Oi Nois Aqui Traveiz

Críticas

Meierhold (Meierhold, 2019) Paulo Bio Toledo (Folha de São Paulo, 26 de novembro de 2019)  À primeira vista, o espetáculo “Meierhold”, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, surpreende pela diferença com relação aos seus outros trabalhos. O grupo gaúcho, fundado em 1978 em Porto Alegre, ficou conhecido por espetáculos com elencos enormes, movimentos corais e pelos deslumbrantes espaços cênicos de vivência com o público. Bem diferente disso, o espetáculo é praticamente um grande monólogo escrito pelo dramaturgo e psicanalista argentino Eduardo Pavlovsky sobre o encenador russo Vsevolod Meierhold. Só o ator Paulo Flores e a atriz Keter Velho estão em cena, as luzes da plateia apagadas, em um palco tradicional. Mas apesar da significativa diferença estética, a montagem funciona como uma espécie de manifesto das posições que o grupo defende. A “alegria dos corpos conjuntos” de que fala Meierhold é uma constante nas décadas de trabalho coletivo da Tribo. Suas enormes montagens na rua (como a recente “Caliban”, adaptação de Augusto Boal para “A Tempestade”, de William Shakespeare) são vibrantes ocupações da cidade que reúnem dezenas de atrizes e atores, muitos deles egressos das oficinas que o grupo organiza. A biomecânica de Meierhold funciona como um dos alicerces do trabalho do Ói Nóis Aqui Traveiz. O texto precisa ganhar materialidade física, musculatura real, precisa ser traduzido em gestos e partituras corporais cheias de novos sentidos. Quando Paulo Flores diz em cena que “a imaginação é a arma mais extraordinária da revolução”, é o personagem Meierhold quem diz, mas é também o ator fundador da Tribo falando. Para ambos, a imaginação é a forma de reinventar a vida, imaginar novas sociabilidades e desenvolver maneiras cada vez mais profundas de expressividade. As posições de Meierhold expressas na peça de Pavlovsky são mais do que um assunto para o Ói Nóis Aqui Traveiz; são constitutivas do que acreditam ser o teatro. Mas há também tragédia na peça. Ela é toda organizada em torno do processo de proscrição de Meierhold, que culmina em sua execução pelo obscurantismo stalinista. Essa dialética entre supressão da vida e retórica vibrante é corporificada de forma comovente por Paulo Flores. Em cena, o corpo violentado pela tortura se reverte na gestualidade alegre de inspiração popular. A dor do mundo convive com a vontade inabalável de transformá-lo. Ainda que culmine na execução de Meierhold, a resistência dele fica de pé. E assim como foi a vida do velho diretor russo, vemos em cena a essência de um grupo que é um dos raros exemplos que faz da arte um exercício de liberdade.

Medeia Vozes: Por uma revivência do trágico [entre o não-lugar e a utopia] (Medeia Vozes, 2013) Claudio Heeman (Zero Hora, abril de 1978)  E eu, para onde irei? Haverá um mundo, um tempo, com lugar para mim? Ninguém a quem possa perguntar. Essa é a resposta. A ferida sara, quando os gritos morrem. O sofrer tem limites, além dos limites fica um nada obtuso, onde se suporta o insuportável. O grito travado na garganta sobe como câncer na alma, nasce muito mais tarde e derruba os palácios. Último monólogo de Medeia, em Medeia Vozes, direcionado ao público. Comecemos pelo final. Ouçamos o eco do grito mudo. Para que escutemos em que vozes este renascerá. Embora devido à labiríntica não-linearidade do Medeia Vozes talvez pudéssemos começar por qualquer uma de suas cenas, por qualquer uma de suas vozes. Mesmo assim eu os convido a ingressar pela saída desta peça multipremiada da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz – os convido a entrar no espaço em que os atuadores dessa tribo nunca voltam para receber os aplausos, justamente porque as palavras, signos e presenças das últimas cenas desse “teatro de vivência” (cujo elemento estético e político central é exatamente o da con-vivência), nos desafiam a não ver o final da peça como um ponto final, mas sim como continuação de uma linha de reflexão profunda sobre, entre outras coisas, os significados e a potência do não-lugar.  Após três horas de um teatro ritual que comporta múltiplas temporalidades e espaços, somos conduzidos à frente de uma sala feita quase impenetrável pela quantidade de árvores e galhos secos lá instalados. No fundo deste inóspito ambiente, é por entre os galhos que avistamos uma Medeia envelhecida que, sentada numa pedra, compartilha um elemento chave da sua versão da história: Mortos. Apedrejados. E eu que pensei que sua sede de vingança terminaria com a minha saída. Cega. Pensava nas crianças como se de vivos se tratassem. Não foi desta vez que os coríntios me deixaram em paz, dizem que eu matei meus filhos. Que eu, Medeia, quis me vingar da traição de Jasão. Quem vai acreditar numa história destas? A grande ironia deste questionamento que é feito diretamente a nós, é que nos coloca na posição de crédulos e ignorantes, ao mesmo tempo que nos incita a questionar o que nos levou a acreditar nisto. Foi este tipo de questionamento que levou Christa Wolf a desafiar a versão de Eurípedes na qual uma mulher traída é movida pelo desejo de vingança a cometer o mais hediondo dos crimes: matar os próprios filhos. Além disso, na versão clássica, ela trai a própria família, assassina seu irmão, mata a “Outra” e, acidentalmente, causa a morte do futuro sogro de seu marido, Rei de Corinto, adicionando, assim, o regicídio à sua lista de crimes. Ao investigar outras versões do mito de Medeia, a escritora alemã, dando continuação ao seu projeto revisionista (1) de cunho feminista, traça um retrato de uma mulher cujo único delito talvez tenha sido o de abandonar a sua própria terra, ao invés de permanecer e resistir às mudanças que cada vez mais soterravam os velhos princípios de sua sociedade de raízes matriarcais. Devido a seus poderes mágicos e por saber demais, ela foi usada pelo marido e demonizada pelo poder civilizatório de Corinto – seu novo lar que nunca a aceitou – como bárbara, assassina e bruxa. Seguindo estratégias cênicas multissensoriais, multiespaciais, de caráter itinerante, imersivo e interativo, as quais fazem parte de uma linguagem denominada “teatro de vivência” que vem sido desenvolvida ao longo das décadas, o Ói Nóis, em sua interpretação da Medeia Vozes de Wolf, também explora a riqueza do bidimensional, que serve, a meu ver, como metáfora para um dos temas centrais da peça: o reducionismo e achatamento humano que a vitória do racionalismo patriarcal “civilizado” sobre o mundo bárbaro matriarcal representam. Isso se manifesta na cena através do apedrejamento a que Medeia se refere, pois este é representado pelo ataque de “cães” (interpretados por atores cobertos em peles) que atiram sacos de tinta vermelha em um desenho retratando duas crianças. A linguagem gráfica deste desenho de giz é a infantil, na qual a figuração humana se compõe através de riscos e círculos. Neste sentido, o assassinato é ludicamente sugerido mas somente confirmado pelo monólogo que abre a última cena. Além disso, a representação dos agentes da pólis, da civilizada cidade-estado de Corinto, como cães e a dos filhos de Medeia como simples figuras rabiscadas claramente ressignifica os primeiros como bárbaros (invertendo portanto os papéis entre agentes bárbaros e civilizadores) ao passo que minimiza o papel dos filhos e da identidade de Medeia como mãe. Apesar deste monólogo final evidenciar um número de contradições, creio que o paradoxo maior surge no momento em que Medeia declara: Agora sou superior a eles. Onde quer que me toquem com as suas cruéis antenas, não encontram em mim uma réstia de esperança ou de medo. Morreu o amor, e também a dor se apaga. Sou livre. Sem desejos, escuto o vazio que me enche toda. A conquista desse “vazio cheio” alcançado através de experiências extremas, a liberta justamente porque estas a levaram a transcender toda a dor, medo, desejo e esperança, posicionando-a no que podemos chamar de não-lugar.  Etimologicamente falando, o não-lugar é a tradução de “utopia”, no sentido de um lugar que só existe na imaginação, mas que impulsiona a ação humana em direção a construção de um mundo melhor. Contudo, nessa reinterpretação feminista do mito de Medeia, ela, ao invés de ser salva por Hélios (escapando de qualquer punição pelos seus ditos crimes) é condenada ao não-lugar no seu sentido mais profundo: ao espaço do exílio contínuo, apesar de ser uma inocente vítima de calúnias. O tom profetizador de sua despedida, no entanto, anuncia que todo seu sofrimento, por mais inexorável que pareça, há de eventualmente se transmutar em energia revolucionária – o que de forma paradoxal semeia a utopia em pleno território distópico. Esta leitura se confirma, de certa forma, pela

O Desvelo em Revelar (Viúvas Performance sobre Ausência, 2011) Valmir Santos (Cavalo Louco – Revista de Teatro, junho de 2011)  “A forma de uma cidade muda mais depressa, Infelizmente, que o coração de um mortal”.   – Baudelaire A memória de um cidadão funde-se com a do lugar onde ele vive. Forçado ao exílio nos Estados Unidos após o golpe militar de 1973, Ariel Dorfman carregou o Chile consigo através de uma obra literária de conteúdo incisivo sobre a realidade do país violentado pelo regime totalitário durante 17 anos. Quando a democracia foi restabelecida, em 1990, o escritor voltou a Santiago, mas acabou permanecendo em território americano. No final daquela década, ele cunhou a palavra “resistência” para batizar uma trilogia dramatúrgica editada em língua inglesa. A peça viúvas ( Viudas em espanhol) foi cotejada naquele livro (1) . Trata-se de uma adaptação do romance homônimo do autor, de 1981, e feita a quatro mãos com o colega americano Tony Kushner, exatamente dez anos depois. Ou seja, 1991: o mesmo ano em que Kushner viu estrear em São Francisco, nos Estados Unidos, a primeira parte do seu drama Angel in América, definida por ele como “uma ficção gays sobre temas nacionais” (Millenium approaches e Perestroika). Kushner de quem o Brasil conhece neste ano a montagem inédita da casa Cabul, de 2001, pelas mãos do diretor José Henrique de Paula, do Núcleo Experimental de Teatro, de São Paulo. O texto é vaticinador dos estigmas sobre a cultura e a religião muçulmanas com ênfase no Afeganistão. Um olhar retrospectivo nota que aproximação desses autores, Dorfman e Kushner, de formação familiar judia, tem a ver com o tônus político, que caracterizam os seus inscritos. Quanto a Viúvas, a história das mulheres que reivindicaram seus homens “desaparecidos”, cujos cadáveres são devolvidos pelas águas de um rio, é flagrante o recorte autobiográfico na figura do Narrador a entremear os diálogos sobre o desterro imposto aos direitos humanos. Ao intervir pela última vez na peça, essa voz épica reconhece nesse “conto de fadas perverso”, porque ora inventado ora embebido pelos fatos históricos, “uma forma de retornar a vida, minhas palavras viajando onde meu corpo estava proibido, meus olhos vendo que a gente lá do meu país não se atrevia a murmurar e o que a gente por aqui [nos EUA] não está interessado em ver” (2). Em Viúvas – performance sobre ausência, trabalho em andamento que veio à luz em janeiro de 2011, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz nos deu a ver os rastros das ditaduras latino-americanas por meio da história dramatizada por Dorman e Kushner. Ao ocupar a ilha das Pedras Brancas, no Rio Guaíba, o grupo particularizou que há de universal na obra. Se na peça Geografia circunscreve uma comunidade imaginária, Camacho, encravada num vale – “Não, não acho necessário contar-lhes como se chama o meu país”, diz o Narrador, alter-ego de Dorfman – ,na experiência teatral o núcleo artístico se apropria da mesma ficção para deflagrar o seu lócus banhado pelas memórias do cárcere político. Um pedaço de terra flutuante que não foi apagado pela natureza e sobre o qual a encenação em processo conseguiu atrair os olhos e a sola dos pés moradores do “continente” a bordo do Terceiro Milênio. Não dá para entrar de chofre nos princípios estéticos e de linguagem implicados. Não dá para não pensar, antes, nas escolhas. Elas ancoram a corajosa atitude dos artistas diante de sua época, do seu país, de sua cidade e, sobretudo, de seu público. A performance tornou-se um fenômeno boca-a-boca na capital gaúcha porque convidou o cidadão a correlacionar fatos históricos. A percorrer cerca de dois quilômetros num barco, em plena hora do crepúsculo. A desembarcar na Ilha do desenho disforme, com cerca de 100 metros de extensão, margeada por rochas de sugestiva alcunha, matação. A testemunhar ações corais do elenco em deslocamento a pé pelo que sobrou do presídio militar, um edifício boa parte dele em ruínas. Vêm à tona os fantasmas do totalitarismo entre aquelas paredes de tijolos e cimentos, gritos de liberdades parados no ar. “Há histórias que pedem a gritos para serem contadas e, se não há palavras ainda para elas, criam-se pele para esperar o momento”. O vento as leva, e a fumaça, o rio, as palavras de cada história encontrarão o caminho até o lugar mais solitário e afastado, sempre que haja alguém que queira escutar”, diz a neta da protagonista ao final, embalando um bebê. Uma nesga de esperança, uma possibilidade de tênue em meio à narrativa dura como tinha de ser, envolvida em organicidade poética, visual, espacial e de atuação que o coletivo de 33 anos domina tão bem em áreas ao ar livre. Foi a primeira vez que o autor conheceu de perto um experimento que desaguará meses depois na montagem propriamente dita, na perspectiva do Teatro de Vivência (3) . A linha de pesquisa da Tribo de Atuadores para as criações apresentadas em espaços fechados propõe percursos sensoriais presumidos com interlocução menos passiva do lado de cá da assistência, mão dupla entre atores e público. Aos que virão depois de nós – Kassandra in process, de 2002, e A missão (lembrança de uma revolução), de 2006, montagem anteriores sob igual paradigma, arquitetavam como que espaços cênicos tridimensionais. O espectador era surpreendido a cada atalho súbito no trânsito de uma cena à outra, especialmente nos conflitos que demandavam lutas coreografadas. A Gênese viúvas – performance sobre a ausência, por sua vez, demarca horizonte ainda não traçados pelo grupo na costumeira prospecção de Campo. Assim como a territorialidade diminuta da ilha serve de convergência a procedimentos que podem ser decorridos tanto do Teatro de Vivência como do Teatro de Rua (outra linha de pesquisa constutíva da alma desde coletivo, o DNA desbravador para o que der e vier), a referida territorialidade impeliu seus integrantes a estratégias até então desconhecidas em termos de síntese, de objetividades tangenciadas às condições-limites do local capinado, varrido e rastreado meticulosamente pelos braços sonhadores de atores, técnicos, ajudantes gerais

Cena local é destaque em Porto Alegre Grupo gaúcho Ói Nóis estréia impactante espetáculo de rua na reta final da mostra Beth Néspoli (Estado de São Paulo, 22 de Setembro de 2008)  Sexta-feira ao meio-dia, Praça da Alfândega no centro da cidade, foram local e hora escolhidos pelo grupo gaúcho Oi Nóis Aqui Traveiz para estrear, no último fim de semana da 15ª edição do Porto Alegre em Cena, seu novo espetáculo O Amargo Santo da Purificação, sobre a vida do militante político baiano Carlos Marighella (1911-1969). Assim a Tribo dos Atuadores, autodenominação desse grupo que celebra 30 anos de existência, conseguiu a proeza de fechar com brilho a programação de indubitável qualidade do festival internacional de artes cênicas da capital gaúcha. Na mostra de 21 dias, que termina hoje, o espectador pôde ver boas peças nacionais, como Zona de Guerra e Amores Surdos, e estrangeiras, entre elas as argentinas Algo de Ruido Hace e Guardavidas. Dirigido por Luciano Alabarse, o festival teve ainda seus grandes destaques ao trazer montagens dirigidas por alguns dos mais talentosos diretores atuantes na cena teatral mundial, como o inglês Peter Brook (O Grande Inquisidor, de Dostoievski), o lituano Eimuntas Nekrosius (Fausto, de Goethe), o argentino Daniel Veronesi (La Noche Canta sus Canciones, de Jon Fosse) e o brasileiro José Celso Martinez Corrêa, cuja adaptação de Os Bandidos, de Schiller, fez sua pré-estréia na mostra, antes de iniciar temporada em São Paulo, na próxima sexta-feira.  Pois os experientes atores do Ói Nóis – 25 nessa montagem, 13 deles jovens vindo de oficinas – conseguiram destacar-se nesse espaço privilegiado. No teatro de rua, há uma vertente estética que aposta na grandiosidade dos efeitos luminosos e sonoros em cortejos coreografados às vezes muito atraentes, de plena visibilidade na rua, mas cuja dramaturgia deixa a desejar.  Na linha oposta, com uma narrativa que alcança contundência poética, porém, ou o ator está sob um palco – é teatro apenas feito na rua, mas não tem linguagem de rua – ou o espectador se vê obrigado a ficar na ponta dos pés, aos pulos, e quase pede um palco, tal a dificuldade de ver e ouvir o suficiente para fazer uma leitura com significado e/ou emoção. Em O Santo Amargo da Purificação, o Ói Nóis conseguiu unir impacto visual e sonoro, ampla visibilidade e dramaturgia elaborada. O aprimoramento do grupo nesse teatro democrático fica evidente já na primeira cena que começa em dois pontos distintos do calçadão. Por um lado chegam atores cujas máscaras, figurinos, canto e coreografia remetem com graça a ancestrais africanos. O mesmo vale para os que chegam do extremo oposto cujas máscaras, figurinos e música informam tratar-se de imigrantes italianos. Nessa encenação, a clássica coreografia abre-alas vai além da função básica que é a de atrair o espectador distraído e anestesiado em sua rotina: transmite de forma poética e sutil informações importantes. Amálgama que se repetirá a cada cena. O encontro dos dois grupos dá conta da ascendência de Marighella, filho de mãe negra e pai imigrante italiano, e estende tal origem à nação brasileira. Esse trânsito entre o privado (a trajetória de Marighella) e o público (a história do Brasil) se dará o tempo todo. E mais, as evoluções coreográficas, muito bem marcadas e atraentes, têm sempre dupla função, dramática e técnica. De forma sutil e eficiente, demarcam o espaço de representação. A roda amplia-se, ou se retrai, conforme a coreografia evolui. Enquanto isso, a trajetória de Marighella vai sendo narrada de forma atraente, com poesia e humor.   Numa das cenas, informações importantes chegam em versos cantados ao som do berimbau numa roda de capoeira da qual Marighella participa, uma de suas paixões, fica-se sabendo então, assim como o carnaval. Nessa fase jovem, a interpretação de Pedro De Camillis humaniza Marighella e faz dele um personagem de forte empatia. Paulo Flores interpreta o político maduro, já engajado na luta armada. O humor popular e picaresco dá o tom no momento do encontro amoroso entre Marighella e sua mulher Clara, vivida por Tânia Farias. Numa bela cena, o grupo cita Glauber Rocha ao recriar a morte de Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol para narrar a resistência de Marighella à prisão. Um divertido boneco de Getúlio Vargas sabiamente serve para quebrar resistências à contundente crítica que se segue, ao Estado Novo. Vale ressaltar ainda o impacto visual do carro alegórico que representa o golpe militar de 1964. Grupo que faz teatro de rua, de graça e por opção ideológica, a qualidade dessa criação do Ói Nóis foi uma das provas na programação do Porto Alegre em Cena do aprimoramento alcançado pela arte teatral brasileira. 

La Misión: hasta la victoria, siempre (A Missão – Lembrança de uma Revolução, 2006) Jorge Arias (Zero Hora, abril de 1978)  As criações do “Ói Nóis Aqui Traveiz” são, infalivelmente, originais. Há várias interpretações possíveis e muitas encenações de “A Missão” de Müller; a dos “atuadores” difere tanto da montevideana de Alberto Rivero, como da leitura encenada de Luciano Alabarse, assim como da leitura deste crítico sobre o texto.  Esta pluralidade não é contradição ou incoerência, mas riqueza; e a obra de Müller ganha em ser apreciada em suas distintas faces e diferentes ângulos. Vemos na “Terreira da Tribo” o Müller poeta, o criador imaginativo fantástico, de a “Descrição de Imagem”. Os ´atuadores´ deram relevância  ao Primeiro Amor, ao anjo do desespero e à cena do Elevador, tão difícil de encaixar com o resto da peça, todas as cenas onde o autor reivindica o espaço do sonho, da fantasia livre, em suma, da liberdade humana; liberdade da imaginação que leva o autor ao nosso mundo de hoje, à Ásia, África  e à América Latina, únicos lugares onde a civilização ocidental pode ser desafiada. Na cena do Elevador, como demonstração de independência e de invenção o “Ói Nóis Aqui Traveiz” colocou o homem em um vão, praticamente em um poço. Como conseqüência, a visão européia deu lugar a um outro olhar, por um lado mais particular, que nos compromete, e por outro lado mais universal, na medida que essa lâmpada acesa pelo autor ilumina nossos territórios, nosso passado montevideano em particular, desonrado pela escravatura e pela sujeição. Da mesma forma que se considerou a escravidão  como inerente à humanidade, nem o primeiro cônsul, nem a monarquia, nem o capitalismo são inerentes. Tampouco é patrimônio da humanidade a transmissão patrilinear do poder; mencionada finamente na encenação, como nos assinalou Tânia Farias, quando os escravos são representados  exclusivamente por mulheres, o que alude  a uma segunda escravidão, ao “proletariado doméstico” de  Engels, sujeição da qual ainda não nos libertamos por completo. A encenação tem uma riqueza de detalhes que à primeira vista não podemos apreciar na sua totalidade. Na primeira cena, por exemplo,  na casa do Antoine, as pilhas de livros (que todos roçam e ninguém chega a derrubar) e sua fantástica aparição saindo dos armários como uma avalanche, sugerem a força física das idéias, a imposição  do intelecto sobre a vida, a obra daqueles que se atreveram a enunciar idéias de liberdade que modificariam o mundo com a Revolução Francesa. Tânia também ressaltou que a música ouvida pelos espectadores, quando estes se colocam diante de uma mesa posta para um banquete, é um concerto de Paganini; porém esta escolha não foi feita ao acaso, mas porque Paganini trabalhou durante anos como músico para a princesa Ana Bonaparte; reforçando a importância de Napoleão em vários episódios da peça. Mas toda esta criação infinita de detalhes e sugestões não foi realizada em desacordo com o texto de Müller, senão sobre ele, seguindo quase linha por linha, como se os limites, os obstáculos e as dificuldades fossem a matéria do verdadeiro artista. Quando termina o espetáculo, onde assistimos dor, morte, fracasso e desolação, o estado de ânimo é de entusiasmo. A encenação torna real estas palavras de Müller a propósito do que o teatro pode oferecer: “O trágico é de fato muito vital: vejo a morte de um homem e isso me fortifica. No entanto, habitualmente, para a maior parte das pessoas, é triste que alguém morra”. Müller, sem dúvida um estóico, que não por acaso escreveu um poema ou performance sobre a morte de Sêneca, disse que temos de viver “sem expectativas nem desespero”. Como acontece com os espetáculos do “Ói Nóis…” tudo é claro e preciso, tudo funciona perfeitamente, o ritmo não se quebra nunca, apesar da pluralidade de cenários, tudo tem medida e intensidade, audácia e bom gosto, transcendência e graça; e em todos os lugares se ouve os roncos e grunhidos de Dionísio. A interpretação está totalmente amalgamada, Tânia Farias cumpre com sofisticação o difícil papel de fazer um homem negro (Sasportas) e Paulo Flores nos deleitou com uma das suas melhores  interpretações.   

Versão memorável da Guerra de Tróia (Aos que Virão Depois de Nós Kassandra In Process, 2002) Com Kassandra in Process, o grupo Ói Nós Aqui Traveiz mostra como estimular e distender os nervos do público Mariangela Alves de Lima (Estado de São Paulo, agosto de 2007)  Quem adota por nome de batismo um verso entoado pelos Demônios da Garoa não está pensando em Londres ou Nova York. Apesar da carteira de identidade verde-amarela, os gaúchos do grupo Ói Nóis Aqui Traveiz trazem a São Paulo a sua leitura mítica da Guerra de Tróia com um título parcialmente grafado em inglês e pitadas de outras línguas no recheio. Em sintonia com as formalizações lendárias a criação coletiva Aos Que Virão depois de Nós: Kassandra in Process não tem pátria de origem nem se submete à circunscrição temporal. Pode, por essa razão, recorrer à diversidade lingüística, à superposição de estilos de diferentes épocas, ao entrelaçamento de representações culturais arcaicas e contemporâneas de todos os recantos do globo. No centro do espetáculo está o mito da princesa e profetiza troiana, cujo destino é advertir aqueles que não acreditam. Também por essa razão – os artistas-profetas de hoje são igualmente vãos -, as referências históricas contidas na encenação tornam-se em vez de advertência, lamento pungente endereçado às gerações futuras. Nesta visão apocalíptica do impulso guerreiro das civilizações, pouco sobra da esperança implícita no poema brechtiano que o grupo emprestou para dar o subtítulo do espetáculo. A julgar por essa criação, o grupo sulista confia pouco ou nada no advento da época em que o homem será amigo do homem. De qualquer modo, a ordem mundial do tempo presente empresta substância às profecias beligerantes de todas as épocas anteriores. Estruturada como uma antologia de escritos poéticos e filosóficos sobre a catástrofe da violência intencional, a encenação refere-se mais ao sentido filosófico e ao impacto psíquico do que aos fatos. Cidades destruídas e populações exterminadas são documentadas de modo verista pelos meios de comunicação e pelo cinema. No teatro feito pelo grupo gaúcho, a memória da protagonista é o espaço onde se desenvolvem em desordem cronológica as evocações dos episódios da Guerra de Tróia, a reflexão sobre a futilidade do conflito e a evocação breve da existência pacífica anterior. Emprestados de autores clássicos e contemporâneos, recortados com precisão e muito bem alinhavados, os textos utilizados no espetáculo são genéricos quando tratam da pulsão de morte e lírico quando se referem ao sofrimento individual dos guerreiros e dos habitantes da cidade sitiada. A alternância entre a reflexão e o plano íntimo da afetividade tem grande importância na formalização do espetáculo porque atribui significados complementares aos ambientes reclusos ou amplos que os espectadores percorrem no decorrer do espetáculo. Enquanto rememora combates, saques, cortejos bélicos e atos violentos, de um modo geral, a sacerdotisa Cassandra projeta voz para ocupar espaços amplos, figuração da planície arenosa no entorno da cidade sitiada ou da vastidão do palácio onde os priamidas confabulam para sustentar uma guerra com motivos falsificados. Ao reviver as alegrias do noviciado no templo de Apolo, as lembranças da família, amigos e amores, a protagonista tem uma projeção de voz mais contida e movimentos proporcionais ao espaço tratado com revestimentos aconchegantes para que se mesclem sentimento e sensação. Professando o credo do teatro ambiental, em que o intérprete partilha com o público os estímulos físicos do espaço e a área de atuação e recepção se alternam ou coincidem ao longo do espetáculo, o elenco do Ói Nóis Aqui Traveiz assume os riscos da opção pela mobilidade e pelo convite à participação. Nem todos os espectadores reagem com a mesma rapidez a um convite para mudar de lugar e a hesitação imprime ao espetáculo um ritmo mais lento, por vezes em desacordo com o vigor das cenas de debate ou confronto corporal. Em outros momentos, os intérpretes se demoram em um achado a que, de modo evidente, atribuem valor estético e a imagem perdura depois que o impacto se esgotou. Quase todas as evocações de um passado tribal, idílico, em que se fundem os mitos de agrários do Oriente e do Ocidente são formalizados de um modo ingênuo, que nos parece debilitado pelo uso freqüente das mesmas composições e materiais repetindo-se no teatro desde os anos 60 do século 20.  Em compensação, há nesta visão nada idílica dos homens cenas de extraordinário poder de síntese que só poderiam ocorrer no teatro, porque dependem do engajamento físico do público. É necessário peregrinar, pisar em superfícies insólitas, galgar, descer e adaptar-se a graus diferentes de luminosidade para se tornar sensível ao conforto do repouso e atento aos elementos próximos e, por vezes, diminutos que o espetáculo mobiliza. Não há dúvida de que o grupo conhece a técnica de estimular e distender os nervos do público. No entanto, mais do que isso, tem a experiência da relação dialógica que depende, em igual medida, das palavras, dos estímulos visuais e sonoros e do ambiente compartilhado. Há  muitas coisas memoráveis na encenação, mas a recriação da atmosfera do regime nazista é um dos ápices. Nessa cena, o macrocosmo é  simbolizado por coisas de aparência delicada e pungente. De uma pequena caixa, com um fio de linha manipulado por um coro juvenil, vai-se desenhando um signo infame. Todas as cenas subseqüentes, depois que a memória se resigna a enfrentar a queda da cidade, a tortura dos combatentes capturados e o estupro e seqüestro das mulheres, infâmia recorrente nos relatos de todas as guerras em todas as épocas, formam um espécie de composição mural gravada em alta definição com aquele selo do belo horrível que não nos permite esquecer o que perturba.  As criações coletivas são fruto de uma postura ética que divide os créditos com toda justiça, porque teatro é sempre produção coletiva. Nesse grupo, contudo, seria uma falsificação galante ignorar o imenso talento, a maestria técnica, a doação absoluta de Tânia Farias ao espetáculo. Quanto ao talento, não há o que dizer, porque há pessoas assinaladas para o palco que, para nossa sorte, não fogem ao

A Morte e a Donzela – Da Tribo (A Morte e a Donzela, 1997) Iná Camargo Costa Para os interessados num teatro exigente, a notícia da montagem de uma peça como A Morte e a Donzela  de Ariel Dorfman não chega a ser propriamente estimulante, porque o texto traz as marcas de uma dramaturgia muito presa ao que se convencionou chamar de realismo. Essa primeira reação, que explicaremos em seguida, fica entretanto imediatamente abalada, transformando-se em genuína curiosidade após a leitura da Revista-Diário de Ensaio  onde a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz expõe os motivos de seu interesse pela peça, as etapas da criação do espetáculo e as observações dos participantes sobre o conjunto da experiência. Finalmente, comparecer à Terreira da Tribo e, desde a entrada naquele espaço (digamos: uma alegoria finíssima de um campo de concentração) até o final do espetáculo (um achado cenotécnico brilhante para referir o modo como todos estamos sendo soterrados nestes tempos de pseudo-democracia hipócrita), receber todos os impactos – visuais, táteis e auditivos – preparados por esse grupo genial, transforma a dúvida inicial em surpresa das mais agradáveis e a surpresa no que chamaríamos, se nos for permitido o aparente abuso dos termos, em alegria estética. É claro que tanta surpresa só se explica por ser a autora destas linhas uma professora universitária presa em São Paulo a seus compromissos didáticos e de pesquisa no campo da história da dramaturgia e da teoria teatral que, por isso mesmo, nunca estivera em Porto Alegre, não pode freqüentar festivais de teatro e, nessas condições, nunca sequer tinha ouvido falar na Tribo. Quem já conhece o grupo talvez se limite a constatar as suas grandes qualidades, que não são poucas. Mas é possível que o registro das razões objetivas daquela agradável surpresa contribua para uma compreensão mais fundamentada da tremenda importância do trabalho deste grupo. Para ficar apenas num tópico, A Morte e a Donzela expõe a hipocrisia das democracias ao sul do Equador, que pagam altíssimo preço em sofrimento humano por terem cedido à chantagem dos expoentes das ditaduras que bateram em retirada, mas permanecem em estado de prontidão (em graus variados, conforme o país). Esta questão se arma principalmente no conflito entre o jurista membro de um comitê federal de investigação dos crimes políticos e sua esposa, a vítima-sobrevivente do terrorismo de Estado. Em linha com os pressupostos estético-políticos de Ariel Dorfman, o texto foi pensado e escrito segundo as convenções modernizadas do teatro realista. Basta pensar que o dramaturgo imagina o principal da cena se desenrolando na sala de visitas da residência do casal e que um desdobramento pesado, no mau sentido mesmo, dessa idéia é o acúmulo de funções do diálogo. Em poucas palavras, uma produção que acatasse as convenções propostas pelo dramaturgo resultaria em espetáculo pesado, arrastado, difícil de se assistir. Percebendo a importância, inclusive política, dos problemas trabalhados e sugeridos pelo texto, e para melhor servi-los, a Tribo tratou de desobedecer, com requintes de miniaturista, cada detalhe da sua letra. Lançando mão de amplo repertório cênico, desenvolvido em quase vinte anos de experimentação, criou um espetáculo poderoso, de grande impacto visual. Desenvolveu cenas mudas, paralelas ao texto, que em alguns momentos o comenta, em outros o critica e, em outros ainda, explicita algumas de suas vitalidades. Um exemplo deste último caso é o momento, visualmente fortíssimo, em que Gerardo desenterra da areia uma corda de navio. No plano da dicção dos atores, foram criados ritmos, importações, texturas de voz, etc. que, aliados a uma movimentação minuciosamente coreografada, permanentemente impedem uma audição “natural” do texto. Tudo isso, mais os recursos cenográficos e adereços, de sonoplastia e iluminação, concorre para a criação de uma História (com maiúscula sim senhor) que põe tudo em cena: o presente, o passado, o enfrentamento dos interesses mesquinhos, os motivos torpes, o inconsciente, o pesadelo e, para não entrar numa enumeração infindável, através de Paulina, a reivindicação de uma vida em moldes mais humanos que, segundo Ariel Dorfman, talvez dependa mesmo da intervenção feminina. Para quem sempre advogou a total liberdade de tratamento do texto no teatro, por acreditar que a atitude dos criadores de um espetáculo em relação ao texto já é, ela mesma, muito significativa, assistir a esse trabalho do Ói Nóis Aqui Traveiz é uma alegria, pois ele demonstra cabalmente uma tese de Maiakóvski: o original deve ser alterado pela cena, corrigido e muitas vezes até mesmo contrariado se o objetivo for apresentar ao público uma experiência  artística de alto nível e comprometida com os problemas de seu tempo.  

Saltimbancos De Combate Fernando Peixoto (Zero Hora, 29 de março de 1997)     Fascinante é o trabalho de permanente busca de uma linguagem cênica aprofundada no terreno ideológico e artístico desenvolvido desde 1978 pela Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre. Em espetáculos no múltiplo espaço de sua sala, o caminho tem sido o mergulho na análise da condição humana através de uma linguagem extremamente rica em símbolos e metáforas, ousando a investigação de uma comunicação penetrante com o público como Fim de Partida de Samuel Beckett, em 1986, Ostal (poucos espectadores ao redor de uma cama num pequeno quarto), produção de 1987, e Antígona, Ritos de Paixão e Morte, deslumbrante pesquisa de espaço e linguagem cênica, em 1990. Ou, mais recentemente, uma versão criativa, resultado de uma pesquisa ousada, Missa para Atores e Público sobre a Paixão e o Nascimento do Doutor Fausto, de Acordo com o Espírito de Nosso Tempo, de 1994. Ao mesmo tempo o grupo tem se empenhado num trabalho de rua que assume abertamente a retomada de um teatro político que instiga e provoca a consciência crítica, utilizando personagens em pernas-de-pau ou bonecos gigantescos, o humor e a denúncia à serviço de uma participação corajosa na abertura de uma reflexão democrática e progressista, rara no teatro brasileiro dos dias de hoje. O Ói Nóis  chegou a colocar na rua  um texto como A Exceção e a Regra de Bertolt Brecht, em 1987, e uma adaptação livre da peça Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, intitulada A História do Homem que Lutou sem Conhecer seu Grande Inimigo, produzida em1988, e retomou um texto exemplar do CPC, Deus Ajuda os Bão, de Arnaldo Jabor, trazendo a ação para os assustadores tempos do governo Collor, assim como desenvolveu uma dramaturgia própria e vigorosa em espetáculos de rua como Os Três Caminhos Percorridos por Honório dos Anjos e dos Diabos e Se Não Tem Pào Comam Bolo!, criações coletivas realizadas em 1993. O primeiro  uma versão livre de uma peça de João Siqueira, a saga de um camponês que expulso da sua terra chega à cidade grande e se transforma em líder operário; a segunda, assumindo como referência inicial uma frase da rainha Maria Antonieta, da França, e recorrendo aos fatos históricos para penetrar no cotidiano brasileiro atual, discutindo tanto a fome como a opressão, a corrupção e a violência da classe política, e isto através de saltimbancos e contadores de história que, como afirma o grupo numa nota publicada num programa “de uma forma satírica e divertida cantam para o povo,  nas ruas, o que a sociedade burguesa, procura esconder: a luta de classes”. É também de 1990, o mesmo ano de  Antígona, a criação de um trabalho fascinante pela força poética e pela teatralidade, um espetáculo sem palavras, apenas deslumbrantes movimentos de corpos e máscaras, a Dança da Conquista  que, segundo o grupo, “coloca em cena o maior genocídio da história da humanidade: a conquista da América pela Europa colonialista”. “Genocídio de que somos todos herdeiros, testemunhas e juizes.”E ainda: “Quinhentos anos depois, assistimos a nossa sociedade permitir  que se leve adiante um verdadeiro extermínio em massa da nação Ianomani, último foco de presença autêntica, intocada, do índio em terras da América”.      Começando a produzir no início de 1978, o Ói Nóis foi formado por um grupo de artistas e estudantes de teatro insatisfeitos, segundo eles, com o teatro e com o seu aprendizado. E preocupados com um trabalho que respondesse ao momento social: “Desde o início esteve ligado aos movimentos populares: a busca em sair do circuito habitual do teatro e realizar um teatro mais eficaz, um teatro de combate, presente no dia-a-dia da cidade, levou o grupo a atuar nas ruas”. E assim o Ói Nóis Aqui Traveiz vem participando em manifestações ecológicas e antimilitaristas contra o uso da energia atômica, as intervenções teatrais surgem em portas de fábricas e junto a protestos contra a violência política e econômica que sufoca os trabalhadores ou em atos contra o extermínio indígena e contra a violência aos operários, contra o FMI ou o perigo nuclear.     Desde 1988, o grupo vem igualmente desenvolvendo projetos como Caminho para um Teatro Popular, criando um circuito regular de apresentações em vilas populares, viajando pelo país, em encontros e festivais, e também o projeto Teatro como Instrumento de Discussão Social, que procura despertar a organização de grupos culturais nas periferias através de oficinas em vilas e bairros longe do Centro. Na sala ou na rua, Beckett e Brecht, o ser humano em sua condição  metafísica trágica ou vítima da luta de classes, a análise poética e crítica do indivíduo ou do coletivo: caminhos e opções aparentemente contraditórios, mas que se completam  num trabalho teatral de criação coletiva que não se detém  diante do já alcançado, que busca penetrar sempre mais fundo em sua inquietação  e perplexidade, transformado em instrumento de reflexão e conscientização social e de combate à colonização e às massificações culturais.     Desde 1984, o Ói Nóis Aqui Traveiz possui e valoriza sua sede de trabalho, seu espaço definido e criativo, um centro de pesquisa cênica e de busca de novas linguagens de comunicação teatral, uma referência expressiva e conhecida em nível nacional: a Terreira da Tribo é sem dúvida um ponto essencial do movimento cultural e artístico de Porto Alegre, do Rio Grande do Sul, do Brasil. Não é apenas um espaço para apresentação de espetáculos em múltiplas diversidades, mas é igualmente um local  de trabalho em busca de uma narrativa sempre insatisfeita consigo mesma, em permanente estado de avanço e investigação. Todo esse sempre surpreendente trabalho de formação e informação precisa ter continuidade e para isso é essencial que este fascinante espaço seja sempre defendido, preservado e desenvolvido, para que essa instigante Tribo de Atuadores permaneça como um exemplo de coletivo de criação cultural em permanente estado de incontestável e dinâmico vigor criativo, orgulho da ação cultural gaúcha e nacional.   

A Casa de Fausto sob o signo do Cruzeiro do Sul – O grupo brasileiro Ói Nóis Aqui Traveiz encena o Fausto de Goethe em Porto Alegre (Missa para atores e público sobre a paixão e o nascimento do Doutor Fausto de acordo com o espírito de nosso Tempo, 1994) Claudio Heeman (Zero Hora, abril de 1978)   Porto Alegre, a capital do estado brasileiro do Rio Grande do Sul, fica perto da costa atlântica a meio caminho entre São Paulo e Montevidéu; com uma população de 1,4 milhões de habitantes, a cidade é uma das metrópoles mais meridionais do planeta. O desbravamento do país foi realizado no séc. XIX sobretudo por imigrantes italianos e alemães. Camponeses do Hunsrück, expatriados pela pobreza e pela fome, depararam-se aqui com uma região de colonização favorecida pelo clima. Quanto à superfície, o estado é maior do que a República Federal da Alemanha antes da reunificação. A sua população autóctone foi fortemente dizimada: por volta de meados do séc. XVIII, os portugueses e espanhóis se associaram para destruir um estado e os seus habitantes, um estado, que tinha dado aos aborígines um espaço de vida, de trabalho e de produção cultural sob o regime patriarcal da Companhia de Jesus. Esse estado religioso com traços peculiarmente socialistas perdurara quase cem anos; depois os exércitos de dois impérios coloniais destruíram essa formação histórica, aniquilando quase todos os índios.  Porto Alegre possui não apenas quatros universidades (duas públicas e duas ligadas à instituições eclesiásticas). A cidade abriga também  o Instituto Goethe – um dos sete filiais do Instituto Goethe, que testemunham no Brasil sobre a vida na Alemanha e ajudam a difundir a língua alemã. Através de palestras, exposições e projeções de filmes, cientistas e artistas alemães dão impulsos para a vida intelectual da cidade e da região e absorvem simultaneamente as suas experiências e os seus problemas: eis um intercâmbio cultural no sentido mais pleno e rico do termo. Em Porto Alegre, o Instituto Goethe, há muitos anos dirigido pelo Dr. Hartmut Becher, acumulou méritos especiais no seu empenho pela vida teatral da cidade, que funciona inteiramente sob o signo de grupos autônomos, necessitados de múltiplo apoio. Onde não há nenhum teatro on (grupos com cargos regularmente remunerados), não há também nenhum teatro off; os grupos autônomos não concorrem em pé de desigualdade com teatros municipais ou estaduais, mas aferem a qualidade do seu trabalho na comparação com os seus semelhantes – com outros grupos de teatro, que se formam para um trabalho feito na base do idealismo e fomentado em cada caso por patrocinadores. Onde não há contratações regulares dos artistas, o engajamento acaba sendo a base da atividade artística.  Dentre as produções cênicas fomentadas pelo Instituto Goethe nos tempos mais recentes deve-se mencionar “Homem é homem” de Brecht, assim como “Eu, Feuerbach” de Tankred Dorst e “Homem branco e pele vermelha”, de George Tabori. A peça grotesca de Brecht sobre os militares é apresentada numa grande sala de teatro de propriedade do município por um conjunto formado exclusivamente por mulheres. Pode-se assistir aos diálogos do índio e do judeu no deserto da peça de Tabori na pequena sala do Instituto Goethe, excelentemente equipada.  Já  uma outra produção, apoiada pelo Instituto Goethe em conjunto com patrocinadores brasileiros, não necessita nem pode necessitar de um palco. Os atores e espectadores não se defrontam aqui naquela bipartição espacial, desenvolvida pelo teatro europeu no decurso de quase quatrocentos anos, em analogia ao confronto no culto divino entre o sacerdote no espaço do altar e a comunidade na nave da igreja. As duas partes, a atuante e a assistente, desenvolvem aqui em espaços sempre novos uma relação flutuante, que se reconfigura de uma cena a outra, que transforma os espectadores em participantes, sem que a diferença fundamental entre atuar e assistir fosse anulada. Mas ela não se deixa mais apreender naquela ordem fixa, que atribui todo o movimento em parte aos atores, em parte à decoração, concedendo aos espectadores a possibilidade da mudança de lugar somente nos intervalos. O que está separado para o freqüentador das salas de teatro há vários séculos: a fase de estar sentado diante da encenação que se comunica em imagens e a fase do caminhar antes do início da encenação, depois do seu término e nos intervalos, funde-se aqui numa unidade. Não são os atores e as cenografias que se movem diante do espectador; é o espectador que se move em espaços cênicos, que mudam de uma cena para outra. O que ocorre aqui é o renascimento daquele modo de representação do fim da Idade Média, no qual os espectadores passavam de um espaço de atuação cênica a outro, em meio à paisagem teatral, percorrendo as estações da história da paixão de Cristo como que num calvário cênico: cada estação era um lugar peculiar, cada transformação era um acontecimento, que convertia o espectador em andarilho, no andarilho que palmilhava a história do drama.  O grupo teatral brasileiro, que logra fazer isso numa obra, que se subtraiu ao teatro da sua época e que parecia ter sido escrita para o teatro do futuro, chama-se “Ói Nóis Aqui Traveiz”, em alemão “Da sind wir wieder!”. O nome sugere uma confirmação da existência diante das forças, que tinham instituído em 1964 uma ditadura militar no Brasil, pensando que as forças, que se empenhavam por maior justiça social e por reformas, haveriam de desaparecer diante da sua brutalidade. O grupo, que se introduziu como aqueles que estão aqui outra vez, foi funda em 1977, numa época, na qual a dominação dos generais, atrás dos quais estavam os latifundiários da região equatorial no norte do Brasil, começou a desagregar-se: entrementes o conjunto se apresenta numa velha fábrica desocupada, cujo aluguel sempre é motivo de novas preocupações. O prédio construído em concreto armado está localizado num bairro metropolitano, cujos sintomas de decadência parecem estranhamente familiares aos visitantes do distante Hemisfério Norte; as cidades da RDA estava marcadas por esses sintomas de outra maneira. Parece que a decadência, o abandono, o arruinamento da infraestrutura

Um Teatro com Pedra nas Veias (Missa para atores e público sobre a paixão e o nascimento do Doutor Fausto de acordo com o espírito de nosso Tempo, 1994) Claudio Heeman (Revista-Programa, maio de 1994)        Na rua Ramiro Barcelos, perto da igreja Santa Terezinha, numa pequena garagem que tinha sido boate, surgiu em 1978 um grupo de teatro. “Um teatro com pedra nas veias”, anunciavam os panfletos de divulgação. O nome do conjunto, em grafia propositadamente iletrada, era Ói Nóis Aqui Traveiz. Nesta identificação já dava para sentir a clara contestação aos padrões bem comportados. Um aviso de que o grupo se propunha tomar atitudes inusitadas e contestadoras. Paulo Flores aparecia como incentivador das atividades e Júlio Zanotta Vieira contribuía no papel de dramaturgia. A direção era colegiada.       O Ói Nóis Aqui Traveiz  provou logo ser diferente dos habituais teatreiros citadinos. Colocava-se em oposição aos padrões vigentes. Na forma e conteúdo os propósitos eram devastadores. Agressivo e radical, o Ói Nóis manifestava recusa absoluta frente à rotina do fazer teatral. Com muita energia lançava-se na quebra geral de moldes burgueses. Repudiava a tradição, as posturas elitistas e estetizantes da vanguarda comum. Nada de diversão ou acomodações estéticas. Revolução visceral. Um movimento que procurava mexer com a cabeça e a vida do público. Propunha intervenção na realidade. Declarava guerra as convenções e à ordem estabelecida. Apresentava convicções ideológicas radicais. Fazia quebra-quebra em busca de uma nova sociedade. Um trabalho de conscientização da platéia.       As denúncias exorcizavam o condicionamento que os poderes discricionários exercem sobre os indivíduos. A exploração do homem pelo homem, as arbitrariedades políticas, o capitalismo, as mil formas de opressão com que a sociedade convive foram escolhidos como alvo para críticas. Nesta linha de tiro acontecia a explosão criativa das encenações. A forma anticonvencional propunha um ritual liberador de forças instintivas e sugestões anárquicas. Inconformismo cheio de ousadia e inovação. Além de tudo, fora de cena, o grupo assumia uma militância coerente com suas visões e projeções cênicas. No andamento de um ritmo grave o Ói Nóis adotou uma forma ritualística, onde a nudez, o envolvimento físico com a platéia, a pantomima, o discurso irracional, a ação metaforizada, a abolição do palco neoclássico, a duração derramada, formaram elementos expositivos marcantes e deram personalidade própria ao grupo. Com aparência e timbre de um acontecimento apocalíptico.       Hoje o conjunto possui sede – a Terreira da Tribo – onde pode experimentar à vontade quando não se encontra em vigiliatura pelas ruas e vilas populares. Vários prêmios reconheceram a qualidade das propostas. E o Ói Nóis Aqui Traveiz  prossegue em seu trabalho colegiado na preocupação de analisar a sociedade contemporânea, denunciar problemas e pugnar pelo oprimido. Coerente com seus princípios e consciente do lugar especial que conquistou no panorama da atividade teatral gaúcha é uma força incontestável. Tem voz política e presença cênica afirmadas.