Cena local é destaque em Porto Alegre
Grupo gaúcho Ói Nóis estréia impactante espetáculo de rua na reta final da mostra
Beth Néspoli (Estado de São Paulo, 22 de Setembro de 2008)
Sexta-feira ao meio-dia, Praça da Alfândega no centro da cidade, foram local e hora escolhidos pelo grupo gaúcho Oi Nóis Aqui Traveiz para estrear, no último fim de semana da 15ª edição do Porto Alegre em Cena, seu novo espetáculo O Amargo Santo da Purificação, sobre a vida do militante político baiano Carlos Marighella (1911-1969). Assim a Tribo dos Atuadores, autodenominação desse grupo que celebra 30 anos de existência, conseguiu a proeza de fechar com brilho a programação de indubitável qualidade do festival internacional de artes cênicas da capital gaúcha.
Na mostra de 21 dias, que termina hoje, o espectador pôde ver boas peças nacionais, como Zona de Guerra e Amores Surdos, e estrangeiras, entre elas as argentinas Algo de Ruido Hace e Guardavidas. Dirigido por Luciano Alabarse, o festival teve ainda seus grandes destaques ao trazer montagens dirigidas por alguns dos mais talentosos diretores atuantes na cena teatral mundial, como o inglês Peter Brook (O Grande Inquisidor, de Dostoievski), o lituano Eimuntas Nekrosius (Fausto, de Goethe), o argentino Daniel Veronesi (La Noche Canta sus Canciones, de Jon Fosse) e o brasileiro José Celso Martinez Corrêa, cuja adaptação de Os Bandidos, de Schiller, fez sua pré-estréia na mostra, antes de iniciar temporada em São Paulo, na próxima sexta-feira.
Pois os experientes atores do Ói Nóis – 25 nessa montagem, 13 deles jovens vindo de oficinas – conseguiram destacar-se nesse espaço privilegiado. No teatro de rua, há uma vertente estética que aposta na grandiosidade dos efeitos luminosos e sonoros em cortejos coreografados às vezes muito atraentes, de plena visibilidade na rua, mas cuja dramaturgia deixa a desejar.
Na linha oposta, com uma narrativa que alcança contundência poética, porém, ou o ator está sob um palco – é teatro apenas feito na rua, mas não tem linguagem de rua – ou o espectador se vê obrigado a ficar na ponta dos pés, aos pulos, e quase pede um palco, tal a dificuldade de ver e ouvir o suficiente para fazer uma leitura com significado e/ou emoção. Em O Santo Amargo da Purificação, o Ói Nóis conseguiu unir impacto visual e sonoro, ampla visibilidade e dramaturgia elaborada.
O aprimoramento do grupo nesse teatro democrático fica evidente já na primeira cena que começa em dois pontos distintos do calçadão. Por um lado chegam atores cujas máscaras, figurinos, canto e coreografia remetem com graça a ancestrais africanos. O mesmo vale para os que chegam do extremo oposto cujas máscaras, figurinos e música informam tratar-se de imigrantes italianos. Nessa encenação, a clássica coreografia abre-alas vai além da função básica que é a de atrair o espectador distraído e anestesiado em sua rotina: transmite de forma poética e sutil informações importantes. Amálgama que se repetirá a cada cena.
O encontro dos dois grupos dá conta da ascendência de Marighella, filho de mãe negra e pai imigrante italiano, e estende tal origem à nação brasileira. Esse trânsito entre o privado (a trajetória de Marighella) e o público (a história do Brasil) se dará o tempo todo. E mais, as evoluções coreográficas, muito bem marcadas e atraentes, têm sempre dupla função, dramática e técnica. De forma sutil e eficiente, demarcam o espaço de representação. A roda amplia-se, ou se retrai, conforme a coreografia evolui. Enquanto isso, a trajetória de Marighella vai sendo narrada de forma atraente, com poesia e humor.
Numa das cenas, informações importantes chegam em versos cantados ao som do berimbau numa roda de capoeira da qual Marighella participa, uma de suas paixões, fica-se sabendo então, assim como o carnaval. Nessa fase jovem, a interpretação de Pedro De Camillis humaniza Marighella e faz dele um personagem de forte empatia. Paulo Flores interpreta o político maduro, já engajado na luta armada. O humor popular e picaresco dá o tom no momento do encontro amoroso entre Marighella e sua mulher Clara, vivida por Tânia Farias.
Numa bela cena, o grupo cita Glauber Rocha ao recriar a morte de Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol para narrar a resistência de Marighella à prisão. Um divertido boneco de Getúlio Vargas sabiamente serve para quebrar resistências à contundente crítica que se segue, ao Estado Novo. Vale ressaltar ainda o impacto visual do carro alegórico que representa o golpe militar de 1964. Grupo que faz teatro de rua, de graça e por opção ideológica, a qualidade dessa criação do Ói Nóis foi uma das provas na programação do Porto Alegre em Cena do aprimoramento alcançado pela arte teatral brasileira.
O AMARGO SANTO DA PURIFICAÇÃO
Cena local é destaque em Porto Alegre
Grupo gaúcho Ói Nóis estréia impactante espetáculo de rua na reta final da mostra
Beth Néspoli (Estado de São Paulo, 22 de Setembro de 2008)
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Sexta-feira ao meio-dia, Praça da Alfândega no centro da cidade, foram local e hora escolhidos pelo grupo gaúcho Oi Nóis Aqui Traveiz para estrear, no último fim de semana da 15ª edição do Porto Alegre em Cena, seu novo espetáculo O Amargo Santo da Purificação, sobre a vida do militante político baiano Carlos Marighella (1911-1969). Assim a Tribo dos Atuadores, autodenominação desse grupo que celebra 30 anos de existência, conseguiu a proeza de fechar com brilho a programação de indubitável qualidade do festival internacional de artes cênicas da capital gaúcha.
Na mostra de 21 dias, que termina hoje, o espectador pôde ver boas peças nacionais, como Zona de Guerra e Amores Surdos, e estrangeiras, entre elas as argentinas Algo de Ruido Hace e Guardavidas. Dirigido por Luciano Alabarse, o festival teve ainda seus grandes destaques ao trazer montagens dirigidas por alguns dos mais talentosos diretores atuantes na cena teatral mundial, como o inglês Peter Brook (O Grande Inquisidor, de Dostoievski), o lituano Eimuntas Nekrosius (Fausto, de Goethe), o argentino Daniel Veronesi (La Noche Canta sus Canciones, de Jon Fosse) e o brasileiro José Celso Martinez Corrêa, cuja adaptação de Os Bandidos, de Schiller, fez sua pré-estréia na mostra, antes de iniciar temporada em São Paulo, na próxima sexta-feira.
Pois os experientes atores do Ói Nóis – 25 nessa montagem, 13 deles jovens vindo de oficinas – conseguiram destacar-se nesse espaço privilegiado. No teatro de rua, há uma vertente estética que aposta na grandiosidade dos efeitos luminosos e sonoros em cortejos coreografados às vezes muito atraentes, de plena visibilidade na rua, mas cuja dramaturgia deixa a desejar.
Na linha oposta, com uma narrativa que alcança contundência poética, porém, ou o ator está sob um palco – é teatro apenas feito na rua, mas não tem linguagem de rua – ou o espectador se vê obrigado a ficar na ponta dos pés, aos pulos, e quase pede um palco, tal a dificuldade de ver e ouvir o suficiente para fazer uma leitura com significado e/ou emoção. Em O Santo Amargo da Purificação, o Ói Nóis conseguiu unir impacto visual e sonoro, ampla visibilidade e dramaturgia elaborada.
O aprimoramento do grupo nesse teatro democrático fica evidente já na primeira cena que começa em dois pontos distintos do calçadão. Por um lado chegam atores cujas máscaras, figurinos, canto e coreografia remetem com graça a ancestrais africanos. O mesmo vale para os que chegam do extremo oposto cujas máscaras, figurinos e música informam tratar-se de imigrantes italianos. Nessa encenação, a clássica coreografia abre-alas vai além da função básica que é a de atrair o espectador distraído e anestesiado em sua rotina: transmite de forma poética e sutil informações importantes. Amálgama que se repetirá a cada cena.
O encontro dos dois grupos dá conta da ascendência de Marighella, filho de mãe negra e pai imigrante italiano, e estende tal origem à nação brasileira. Esse trânsito entre o privado (a trajetória de Marighella) e o público (a história do Brasil) se dará o tempo todo. E mais, as evoluções coreográficas, muito bem marcadas e atraentes, têm sempre dupla função, dramática e técnica. De forma sutil e eficiente, demarcam o espaço de representação. A roda amplia-se, ou se retrai, conforme a coreografia evolui. Enquanto isso, a trajetória de Marighella vai sendo narrada de forma atraente, com poesia e humor.
Numa das cenas, informações importantes chegam em versos cantados ao som do berimbau numa roda de capoeira da qual Marighella participa, uma de suas paixões, fica-se sabendo então, assim como o carnaval. Nessa fase jovem, a interpretação de Pedro De Camillis humaniza Marighella e faz dele um personagem de forte empatia. Paulo Flores interpreta o político maduro, já engajado na luta armada. O humor popular e picaresco dá o tom no momento do encontro amoroso entre Marighella e sua mulher Clara, vivida por Tânia Farias.
Numa bela cena, o grupo cita Glauber Rocha ao recriar a morte de Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol para narrar a resistência de Marighella à prisão. Um divertido boneco de Getúlio Vargas sabiamente serve para quebrar resistências à contundente crítica que se segue, ao Estado Novo. Vale ressaltar ainda o impacto visual do carro alegórico que representa o golpe militar de 1964. Grupo que faz teatro de rua, de graça e por opção ideológica, a qualidade dessa criação do Ói Nóis foi uma das provas na programação do Porto Alegre em Cena do aprimoramento alcançado pela arte teatral brasileira.