Propósitos devastadores
Claudio Heeman (Zero Hora, 11 de dezembro de 1978)
O teatro “Ói Nóis Aqui Traveiz” está de novo em pleno delírio orgiástico, encenando mais um de seus rituais bárbaros. Anárquico e selvagem, o atual cartaz do teatro de vanguarda da rua Ramiro Barcellos é uma súmula de atrocidades, uma espécie de missa negra, primitiva e alucinada.
Evidentemente é um cerimonial de teor simbólico e hiper-realista. Seu propósito é comprar o horror e a selvageria que o espetáculo mostra, com a sociedade vigente, desnudando a irreprimível barbárie que vive embaixo das máscaras da lei, da ordem, da justiça e da civilização. Nada existe no mundo a não ser uma terrível câmara de torturas movida por forças irracionais. Desta vez, o “Ói Nóis” está usando como pretexto uma pequena obra de Arrabal. Trata-se de “A Bicicleta do Condenado”, onde um jovem, que é finalmente assassinado por seus carcereiros, sonha com amor e liberdade, enquanto procura viver, mesmo estando preso, num universo bestial, violento e opressivo.
A sala de espetáculos do “Ói Nóis”, com suas telhas à mostra, falta de forro e paredes cheias de pedras irregulares, está quase transformada numa arena romana. Os atores brigam e revoluteiam no chão que está meio cheio de areia. Alguns sacos com terra e tijolos empilhados servem precariamente para acomodar o público. É óbvio que não pretendem acomodar o público, mas sim, incomodá-lo, criar desconforto físico. Pois o espetáculo não é outra coisa que um “happening” composto de lutas e servícias em que o público é envolvido, até fisicamente, durante vários instantes. Torturas, combates corporais, ataques sexuais simulados nos quais os atores se envolvem, terminam por atingir o público. Assim, a platéia ér agarrada, empurrada, banhada de areia, de suor, involuntariamente participando de ações violentas, crueldades e dos abusos que os intérpretes sofrem uns dos outros, rolando pela areia, manietados por cordas, despidos ou grotescamente caracterizados. A platéia fica envolvida num esquema de acontecimentos bárbaros. Grunhidos, urros de dor, resfolegar de gozo sexual, gritos, obscenidades gestuais, atos cruentos, há de tudo no espetáculo. É um festival bárbaro, um ritual sado-masoquista, catártico, numa terra selvagem. Tudo é dominado pela arbitrariedade e violência e uma avassaladora animalidade. Um jogo primitivo de prazer e dor entre fortes e fracos, que se revezam em papéis ativos e passivos.
O espectador é agarrado, amassado, sacudido, empurrado, banhado de areia. Fica colocado no meio de lutas e gozos. Recebe em close-up a visão de partes anatômicas dos atores que, em filmes como “Laranja Mecânica”, a censura esconde com bolas pretas. Ao fim do espetáculo, o público sai do “teatro” um pouco agitado, um pouco diferente, tocado por muitos estímulos sensíveis. Afinal, ao menos um grão de areia entrou em seu sapato ou em sua orelha. Creio que o propósito do “Ói Nóis Aqui Traveiz” é exatamente este: colocar uma pedrinha dentro da vida de cada um dos participantes de sua platéia.
Gostaria de saber até onde a provocação que é feita ao público, no sentido de participação não solicitada, poderia ser respondida à altura, pela platéia. Se em algum espetáculo o público participasse efetivamente, envolvendo-se na ação, que resposta teriam os atores? Que rumo tomaria o espetáculo? O “Ói Nóis” aceitaria um espetáculo em que a participação do público tornasse imprevisível o rumo dos acontecimentos? A total interferência no planejamento cênico? A destruição das marcações pré-determinadas? Que tal convidar especialmente uma platéia disposta a tudo, para chegarmos à situação-limite a conclusões sobre este tipo de teatro experimental? Será que a ferocidade do espetáculo encontraria parceiros da parte do público? Haveria uma nivelação animalesca? Eis uma experiência que a experimentação do “Ói Nóis Aqui Traveiz” deveria experimentar. Tudo em nome da pesquisa artística, da linguagem teatral e do progresso da sociedade. Talvez se descobrisse os limites do teatro da crueldade…