A Casa de Fausto sob o signo do Cruzeiro do Sul – O grupo brasileiro Ói Nóis Aqui Traveiz encena o Fausto de Goethe em Porto Alegre
Claudio Heeman (Zero Hora, abril de 1978)
Porto Alegre, a capital do estado brasileiro do Rio Grande do Sul, fica perto da costa atlântica a meio caminho entre São Paulo e Montevidéu; com uma população de 1,4 milhões de habitantes, a cidade é uma das metrópoles mais meridionais do planeta. O desbravamento do país foi realizado no séc. XIX sobretudo por imigrantes italianos e alemães. Camponeses do Hunsrück, expatriados pela pobreza e pela fome, depararam-se aqui com uma região de colonização favorecida pelo clima. Quanto à superfície, o estado é maior do que a República Federal da Alemanha antes da reunificação. A sua população autóctone foi fortemente dizimada: por volta de meados do séc. XVIII, os portugueses e espanhóis se associaram para destruir um estado e os seus habitantes, um estado, que tinha dado aos aborígines um espaço de vida, de trabalho e de produção cultural sob o regime patriarcal da Companhia de Jesus. Esse estado religioso com traços peculiarmente socialistas perdurara quase cem anos; depois os exércitos de dois impérios coloniais destruíram essa formação histórica, aniquilando quase todos os índios.
Porto Alegre possui não apenas quatros universidades (duas públicas e duas ligadas à instituições eclesiásticas). A cidade abriga também o Instituto Goethe – um dos sete filiais do Instituto Goethe, que testemunham no Brasil sobre a vida na Alemanha e ajudam a difundir a língua alemã. Através de palestras, exposições e projeções de filmes, cientistas e artistas alemães dão impulsos para a vida intelectual da cidade e da região e absorvem simultaneamente as suas experiências e os seus problemas: eis um intercâmbio cultural no sentido mais pleno e rico do termo. Em Porto Alegre, o Instituto Goethe, há muitos anos dirigido pelo Dr. Hartmut Becher, acumulou méritos especiais no seu empenho pela vida teatral da cidade, que funciona inteiramente sob o signo de grupos autônomos, necessitados de múltiplo apoio. Onde não há nenhum teatro on (grupos com cargos regularmente remunerados), não há também nenhum teatro off; os grupos autônomos não concorrem em pé de desigualdade com teatros municipais ou estaduais, mas aferem a qualidade do seu trabalho na comparação com os seus semelhantes – com outros grupos de teatro, que se formam para um trabalho feito na base do idealismo e fomentado em cada caso por patrocinadores. Onde não há contratações regulares dos artistas, o engajamento acaba sendo a base da atividade artística.
Dentre as produções cênicas fomentadas pelo Instituto Goethe nos tempos mais recentes deve-se mencionar “Homem é homem” de Brecht, assim como “Eu, Feuerbach” de Tankred Dorst e “Homem branco e pele vermelha”, de George Tabori. A peça grotesca de Brecht sobre os militares é apresentada numa grande sala de teatro de propriedade do município por um conjunto formado exclusivamente por mulheres. Pode-se assistir aos diálogos do índio e do judeu no deserto da peça de Tabori na pequena sala do Instituto Goethe, excelentemente equipada.
Já uma outra produção, apoiada pelo Instituto Goethe em conjunto com patrocinadores brasileiros, não necessita nem pode necessitar de um palco. Os atores e espectadores não se defrontam aqui naquela bipartição espacial, desenvolvida pelo teatro europeu no decurso de quase quatrocentos anos, em analogia ao confronto no culto divino entre o sacerdote no espaço do altar e a comunidade na nave da igreja. As duas partes, a atuante e a assistente, desenvolvem aqui em espaços sempre novos uma relação flutuante, que se reconfigura de uma cena a outra, que transforma os espectadores em participantes, sem que a diferença fundamental entre atuar e assistir fosse anulada. Mas ela não se deixa mais apreender naquela ordem fixa, que atribui todo o movimento em parte aos atores, em parte à decoração, concedendo aos espectadores a possibilidade da mudança de lugar somente nos intervalos. O que está separado para o freqüentador das salas de teatro há vários séculos: a fase de estar sentado diante da encenação que se comunica em imagens e a fase do caminhar antes do início da encenação, depois do seu término e nos intervalos, funde-se aqui numa unidade. Não são os atores e as cenografias que se movem diante do espectador; é o espectador que se move em espaços cênicos, que mudam de uma cena para outra. O que ocorre aqui é o renascimento daquele modo de representação do fim da Idade Média, no qual os espectadores passavam de um espaço de atuação cênica a outro, em meio à paisagem teatral, percorrendo as estações da história da paixão de Cristo como que num calvário cênico: cada estação era um lugar peculiar, cada transformação era um acontecimento, que convertia o espectador em andarilho, no andarilho que palmilhava a história do drama.
O grupo teatral brasileiro, que logra fazer isso numa obra, que se subtraiu ao teatro da sua época e que parecia ter sido escrita para o teatro do futuro, chama-se “Ói Nóis Aqui Traveiz”, em alemão “Da sind wir wieder!”. O nome sugere uma confirmação da existência diante das forças, que tinham instituído em 1964 uma ditadura militar no Brasil, pensando que as forças, que se empenhavam por maior justiça social e por reformas, haveriam de desaparecer diante da sua brutalidade. O grupo, que se introduziu como aqueles que estão aqui outra vez, foi funda em 1977, numa época, na qual a dominação dos generais, atrás dos quais estavam os latifundiários da região equatorial no norte do Brasil, começou a desagregar-se: entrementes o conjunto se apresenta numa velha fábrica desocupada, cujo aluguel sempre é motivo de novas preocupações. O prédio construído em concreto armado está localizado num bairro metropolitano, cujos sintomas de decadência parecem estranhamente familiares aos visitantes do distante Hemisfério Norte; as cidades da RDA estava marcadas por esses sintomas de outra maneira. Parece que a decadência, o abandono, o arruinamento da infraestrutura não são uma característica de sociedade do socialismo de estado, mas proliferam independentemente da estrutura político-econômica, em todos os lugares, nos quais o progresso técnico e seus custos sociais imensos desclassificam as economias nacionais mais pobres. O que admira, no caso do Brasil, é que isso não tenha nenhum traço exótico.
A verdade sobre o Doutor Fausto
O prédio de um andar dispõe de um pátio interno e de uma área livre na sua frente. Nenhum desses espaços é deixado à margem pelo grupo, quando ele encena um texto com o “Fausto” de Goethe, cuja dramaturgia caracteristicamente pouco amarrada se opunha de tal maneira ao conceito e à práxis do velho teatro de cenografias móveis, que ele era considerado não-encenável durante a vida do poeta. Encena-se o “Fausto” inteiro, do gabinete de estudos até os desfiladeiros, e transforma-se a obra num todo teatral, na medida em que se descobre a correspondência espacial da sua multiplicidade cênica, a dez mil quilômetros de distância de Frankfurt e Weimar: a casa de espetáculos, na qual o espectador (cada noite cabem apenas trinta pessoas) vai de cena em cena com os atores, sobe escadas, anda tateando por corredores, encontra a saída para fora.
Isso começa na rua, na frente do portão, e o trânsito pára diante da estranha visão: uma turba de monges e monjas envoltos em capuzes entra da rua na casa do espetáculo, que se encontra no fim de um caminho para pedestres. Agitando os guizos no chapéu, a figura de um bobo entra no séqüito e oferece aos espectadores, que vão atrás, a mensagem de Nietzsche sobre o “homem louco”. No fim do caminho todos se reencontram como que numa velha cidade alemã; diante das portas de casas pequenas aparecem homens e mulheres, vestidos com trajes medievais, e olham com amabilidade distanciada para os convidados do tempo presente. Estes, por sua vez, estacam diante de um teatro de bonecos, onde se encena com marionetes graciosamente conduzidos uma nova peça, a peça do Doutor Fausto. Tudo isso se apresenta na roupagem da história, mas a impressão que fica não é a das imagens de fantasia, como no palco ou no cinema; ela é afetada pela magia, poderíamos falar no efeito de Vineta. Tem-se a impressão de entrar numa região mal-assombrada e a imperfeição da reprodução, que lembra os livros de contos de fadas ou as feiras Strietzel, reforça a impressão de um sonho, ao invés de diminuí-la.
Encena-se o Fausto inteiro, mas não o texto inteiro nem todas as cenas. Há acréscimos na forma de enxertos textuais e invenções de imagens; o que falta já no início da peça é, além do Prólogo no Céu, o prelúdio no teatro. O grupo não define o seu acesso à estória através da aposta entre Deus e o diabo, mas através do teatro de bonecos sobre a danação de Fausto; esse teatro é colocado no início como uma interpretação sancionada do destino de Fausto, seguindo-se então a encenação do texto de Goethe como a história verdadeira, que é desmentida pela leitura oficial. Num país basicamente católico ou, mais precisamente catolicizado, o grupo recapitula o olhar do próprio Goethe sobre a matéria, garantindo-se assim um acesso novo e independente; ele encena Goethe para contradizer a interpretação ideológica da estória. Isso esclarece de forma incomum o caráter oposicionista da própria peça canonizada.
A verdade sobre o Doutor Fausto: o espectador, conduzido para o interior, experimenta-a no gabinete de estudos, numa sala grande e pé direito baixo, que se apresenta como gabinete de um erudito, decorado com a mobília do fim do séc.XIX. Figurino e interior evocam não a época do Fausto histórico, mas a representação, que o historicismo fazia dela – e isso é parcialmente intencional, parcialmente o resultado da improvisação. Como não foi possível arrumar livros de 1550, coloca-se nas prateleiras livros de 1880, ocorrendo o mesmo com as cadeiras e os tubos de ensaio. Dessa maneira apropriada (não se deve esquecer que não se conhece uma Idade Média européia no sul do Brasil, mas há, isso sim, o estilo burguês do século passado) essa história do Fausto se passa simultaneamente no seu plano temporal original e na neo-renascença de 1880 – eis uma interferência, que é enriquecida constantemente com outros planos de alusões.
Paulo Flores, um dos membros mais antigos da companhia, representa o Fausto com barba esvoaçante e aquele gesto retórico familiar ao teatro brasileiro. A base da representação não é aquela imitatividade precisa, que o teatro europeu incorporou a si na naturalismo, refinando e clarificando-a posteriormente, mas a expressividade sem mediações, uma atuação extrovertida na explanação. Mas a situação mágica do testemunho sem mediações, que envolve o espectador confere às expectorações do atormentado professor um caráter distinto de encenações em qualquer outro palco. O visitante freqüenta a residência do Dr. Fausto, é colocado contra a parede, empurrado contra os móveis e recua sempre de novo, quando o erudito atormentado se dirige para esse ou aquele lado; ele é o participante mudo de uma história, que soa diferente da versão oficialmente sacramentada do teatro de bonecos. Alguns poucos foram eleitos para perceber o que realmente aconteceu, de modo que é perfeitamente legítimo que um cão verdadeiro, não um poodle, entre no gabinete e assuma o seu lugar atrás do fogão, de onde ele interfere com sons humanos nos temas fáusticos.
O passeio pascoal é deixado de lado (os próprios espectadores fazem o passeio pela cidade) e o fâmulo não aparece; da rejeição do cálice de veneno a estória passa diretamente para a tradução da Bíblia e o ronco do poodle. Mas nenhum estudante medieval itinerante aparece por trás do fogão e provoca risadas no professor; quem aparece é, muito pelo contrário, um condenado, um evadido do inferno, que baixa para o gabinete pelo teto aberto, gradeado por caibros, e recua sempre de novo para se proteger nas alturas das medidas contrárias de Fausto, sacudindo cheio de temor o corpo enlameado. Kike Barbosa representa esse pobre diabo em nudez, com flexibilidade acrobática e grande intensidade na atuação; sua cabeça e seu corpo estão enlameados, como se ele tivesse se libertado com dificuldade do ventre da terra. Ele representa como se a sua vida estivesse em jogo, como se ele corresse o risco se ser arremessado de volta às profundezas do inferno, se ele não conseguir seduzir o doutor, e por fim ele ganha a parada: o erudito barbudo abre a sua camisa, para que o sangue, o pacto possa ser retirado. Nenhuma faca consegue ferir-lhe a pele, e o espírito maligno se joga das alturas sobre Fausto, que está disposto a assinar o contrato, atira-o no chão e suga-lhe o sangue do pacto do peito. Esse é um dos momentos mais importantes de toda a encenação. A imaginação de uma zona experimentada nas lides demoníacas perpassa a cena com uma força sensual e uma energia dramática sem paralelos. Barbosa é um ator de primeira linha e deverá tomar cuidado para evitar a passagem de um experiente diretor de cinema por Porto Alegre, pois nesse caso ele poderia desgarrar-se do seu grupo.
Depois do gabinete espaçoso, de pé direito baixo, os atores e os co-atores entram num corredor, em cuja saída se avista num balcão elevado uma imagem animada: três figuras femininas, envoltas em panos cinzentos de muitas dobras, que enrolam o fio do destino num fuso e cortam-no – uma imagem como que inventada pela mão de um antigo pintor espanhol. Através de um espaço, no qual um equilibrista despenca da corda bamba e morre (invenções originais desse tipo aparecem sempre de novo na encenação), chega-se por escadas e pinguelas para a cozinha das bruxas, que é tão acanhada e sombria, que a turba dos demônios passa dificuldades para não enfeitiçar de quebra os espectadores. As assombrações se manifestam com proximidade física: uma Leda, abraçada por um cisne e a bruxa nua, que desce de cima sobre o homem sedento de vida, para despertar nele o sexo.
Ainda que de maneira muito refletida, o teatro se vê aqui subtraído, de forma completamente desprovida de ambições intelectualistas, àquela bidimensionalidade, que foi a relação subjacente ao efeito produzido por ele durante séculos a fio. O cinema e mais tarde a televisão levaram essa essência imagética unilateral às últimas conseqüências técnicas, modificando-a simultaneamente na medida em que a câmara em travelling colocava o espectador em meio aos acontecimentos. Aqui, no distante Brasil meridional, foi dado o passo para superar essa relação antiga. Esse passo foi dado por um teatro, que coloca o espectador em condições de escolher ele mesmo o seu ponto de observação. Isso não é obra do acaso. A linhagem dos antepassados é extensa: fazem parte dela Artaud e Grotowski, mas também as encenações de Shakespeare da Berliner Schaubühne dos anos setenta, movidas por um similar sentimento de insatisfação diante do teatro da imagem fixa. Mas não há dúvida: Ói Nóis Aqui Traveiz chegou nessa casa de Fausto a um novo patamar num caminho, que contrapõe à máquina de imagens, que é a televisão (e que é tão banal e tão poderosa no Brasil como no mundo inteiro) uma imediatidade, que mobiliza com recursos teatrais e a terceira dimensão, a dimensão de uma experiência física no espaço.
Anátema e sagração da primavera
O princípio do palco simultâneo, que define toda a encenação, repete-se nas cenas de Margarida nas dimensões de um espaço com forma de sala, e o espectador pode escolher os pontos, a partir dos quais ele quer assistir aos acontecimentos; ele pode também mudar de lugar. Nos dois lados estreitos tornam-se presentes duas instâncias polares: num lado, o grupo de imobilidade estatuária, no qual aparecem, ao lado de um sacerdote, um cavaleiro e uma mulher (trata-se de Valentim e da mãe de Margarida), à semelhança de estátuas; no outro lado, a área do jardim com o lago, as pedras e as plantas, que aparece atrás de véus. O lado da igreja estende-se por todo o espaço na forma de figuras de santos (aquelas figuras carregadas da rua para dentro do recinto); a roda de fiar se encontra aqui, em cuja caixa Mefisto deposita o cofrinho de jóias, além da Pietá, de quem Mefisto surrupiou o cofrinho. Mefisto não é mais o diabo nu, saído das entranhas da terra, mas um homem elegante com quepe preto e manto amplo com uma bainha vermelha – o homem dos bastidores, que segura todos os fios do enredo. O pacto fez com que ele se transformasse muito mais profundamente do que o professor, que conservou a sua enorme barba de pope na nova fase da vida, não se desfazendo dela nem na segunda parte da peça. No fim ele ressurge com ela de um túmulo, para depois de uma subida sonambúlica para o telhado de uma das casas, que circundam o pátio, recostar a cabeça no seio de uma mulher divina, símbolo do eterno feminino, numa apoteose de que foi declarado inocente.
Acontecimentos, que o texto não esclarece, são trazidos à luz em pantomimas, encenadas no espaço variado. Com o lago transformado em leito nupcial de uma Margarida, a quem Sandra Possani, a franzina atriz de charme sulino, confere a expressão de entrega incondicional, o pequeno jardim de D. Marta se torna palco da união amorosa e o veneno da bebida sonífera é oferecido de forma identificável: a mãe abandona a pose de madona, toma o cálice, bebe e cai ao chão.
O espaço inteiro, repleto se figuras de santos, transforma-se em catedral, quando após a morte de Valentim a voz do espírito maligno assalta Margarida, que busca amparo junto à Virgem. “A abóbada me oprime! – Quero respirar!”: nessa exclamação de Margarida se revela a intenção de uma obra, que foi, ela mesma, uma tentativa apaixonada de libertar-se das coerções de uma Idade Média não-superada. No Brasil católico, no qual as camadas de não-contemporaneidade se sobrepõem, se atritam e se imbricam, o texto obtém o sentido de uma peça sobre a época contemporânea, que agarra o espectador na sua própria experiência.
O pequeno jardim ao lado do espaço da catedral é um asilo estreito e ameaçado na sua integridade; somente a noite das bruxas revela o contramundo efetivo. Aqui ela não se dá em nenhuma região satanicamente esquisita, como é o caso em Goethe (em que pese toda a transparência satírico-humorística) mas ela é traduzida nitidamente para um registro positivo, abrindo espaço a uma magia de primavera e fecundação de inocência paganamente arcaica. Espectadores e atores estão nessa cena literalmente ao ar livre, num pátio contemplado pelas janelas dos prédios de aluguel, iluminadas à noite. No meio do pátio está acesa uma fogueira, num pedestal à margem uma jovem de seios descobertos se transmuda com saliências colocadas no corpo, que sugerem muitos seios, na Diana de Éfeso. A grotesca mascar indígena ao seu lado desaparece no decorrer da cena e uma figura masculina nua, com cabeça de bode, ocupa seu lugar: o inverno cede a um demônio primaveril, que se aproxima explicitamente da deusa de muitos seios e oferece o seu traseiro ao culto, que o autor, apavorado consigo mesmo e com a censura, enterrou no fundo do seu depósito de matérias escatológicas.
Máscaras, que agitam tochas, dançam ao redor das chamas, oferecem vinho em todas as direções e incluem aqui e ali um espectador, assim B.K. Tragelehn, que se junta à roda do fogo como um gracioso bacante. Quando a fogueira se apaga, a turba dionisíaca se transforma numa sociedade de copulantes; antes disso Margarida aparece sobre o telhado de um galpão, como a mulher atormentada de uma sociedade desnaturada. Numa paisagem, na qual a vitória cristã de uma cultura originária deixou um trauma de efeito prolongado, a assombração das bruxas possuídas pelo diabo na montanha do Brocken se transformou numa sagração da primavera, que se contrapõe orgiasticamente à doutrina do pecado original e da demonização do corpo.
O que fazer com Brecht?
O retorno à realidade acaba sendo proporcionalmente fantasmagórico. O próprio Mefisto convida os espectadores para retornarem do pátio da dança das bruxas para o interior; com um sorriso triunfante, ele intima a multidão de voyeurs para que se aproximem. Eles chegam ao gabinete de estudos, em cujo centro se encontra agora uma grande jaula de ferro, na qual Margarida está deitada sobre uma cama de feno. O gesto, com o qual o diabo convida os espectadores a olhar a obra de destruição, é prenhe de sentidos: aquele teatro demonstrativo, que Brecht outrora tinha em mente com o teatro épico (ele deslocava-o tanto mais para o nível da teoria, à medida que as condições do teatro estatal e do teatro de Cosmorama só lhe davam oportunidades muito limitadas para a sua realização), transforma-se aqui num momento de grande impacto cênico.
Premido pelas circunstâncias, esse grupo teatral brasileiro deixou as amarras das convenções para trás. De peça em peça ele reinventa o teatro, com um radicalismo, ao qual o jogo com teoremas é tão estranho como o jogo com o poder. O que fazer com Brecht? Essa pergunta presidiu um simpósio realizado durante quatro noitadas no Instituto Goethe de Porto Alegre. Pessoas ligadas ao teatro da Alemanha e da América Latina (esses últimos de quatro países, os primeiros de Berlim Oriental) discutiram sobre a questão, se e como a herança do teatro brechtiano poderia ser utilizada fecundamente em tempos mais avançados. A encenação do “Fausto” na fábrica desativada já tinha dado a resposta antes da formulação da pergunta; ela deu a resposta a partir do espírito, da experiência, da fantasia de uma geração jovem. Ela deu ao conceito de um teatro épico aquele sentido amplo, com o qual o escritor de peças somente pôde sonhar: o sentido de um jogo cênico, que explode as relações do palco e de imagens, à medida que ele transforma os espectadores em acompanhantes das suas próprias andanças.
Um trabalho teatral, que resiste aos textos, à medida que ele os carrega com as exigências do seu lugar e do seu tempo e conquista para eles a espacialidade que lhe é própria – esse sonho de um teatro anticulinário, existencial foi posto em operação por um conjunto de atores, que é um grupo livre no pleno sentido do termo: livre de estruturas hierárquicas (as encenações são uma produção feita em trabalho de equipe), livre da distinção entre atores profissionais e amadores (pessoas altamente profissionais como Barbosa trabalham com atores, cujos pré-requisitos são completamente diferentes), livre também da remuneração regular e fixa, que fez em muitos casos uma profissão socialmente segura, com todas as vantagens e desvantagens dessa seguridade.
O grupo Ói Nóis Aqui Traveiz conseguiu realizar em dezessete anos um programa de grande amplitude que vai da peça didática de Brecht sobre A Exceção e a Regra, apresentada em 1988 como fulminante teatro de rua no estilo das máscaras da commedia dell´arte, até As Criadas de Jean Genet, e que vai de Fin de Partie de Beckett até Ostal, uma peça localizada em células minúsculas sobre o problema da esquizofrenia. Depois de uma Antígona coerentemente des-historicizada na sala de espetáculos, encenada no ano anterior, esse Fausto levado a cabo em todos os cenários, inclusive os da segunda parte, até chegar ao amargo e elevado fim, representa um ponto culminante sui generis. Em cima do texto de Goethe, cujas canções são cantadas em alemão pelas melodias de Zelter, desenvolvem-se uma riqueza de invenção e uma intensidade de atuação teatral, que tocam o espectador da distante Europa como um milagre – como o milagre de uma arte, que faz com que o distante chegue a si, na medida em que ela o faz falar por si.