A Morte e a Donzela – Da Tribo (A Morte e a Donzela, 1997) Iná Camargo Costa Para os interessados num teatro exigente, a notícia da montagem de uma peça como A Morte e a Donzela de Ariel Dorfman não chega a ser propriamente estimulante, porque o texto traz as marcas de uma dramaturgia muito presa ao que se convencionou chamar de realismo. Essa primeira reação, que explicaremos em seguida, fica entretanto imediatamente abalada, transformando-se em genuína curiosidade após a leitura da Revista-Diário de Ensaio onde a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz expõe os motivos de seu interesse pela peça, as etapas da criação do espetáculo e as observações dos participantes sobre o conjunto da experiência. Finalmente, comparecer à Terreira da Tribo e, desde a entrada naquele espaço (digamos: uma alegoria finíssima de um campo de concentração) até o final do espetáculo (um achado cenotécnico brilhante para referir o modo como todos estamos sendo soterrados nestes tempos de pseudo-democracia hipócrita), receber todos os impactos – visuais, táteis e auditivos – preparados por esse grupo genial, transforma a dúvida inicial em surpresa das mais agradáveis e a surpresa no que chamaríamos, se nos for permitido o aparente abuso dos termos, em alegria estética. É claro que tanta surpresa só se explica por ser a autora destas linhas uma professora universitária presa em São Paulo a seus compromissos didáticos e de pesquisa no campo da história da dramaturgia e da teoria teatral que, por isso mesmo, nunca estivera em Porto Alegre, não pode freqüentar festivais de teatro e, nessas condições, nunca sequer tinha ouvido falar na Tribo. Quem já conhece o grupo talvez se limite a constatar as suas grandes qualidades, que não são poucas. Mas é possível que o registro das razões objetivas daquela agradável surpresa contribua para uma compreensão mais fundamentada da tremenda importância do trabalho deste grupo. Para ficar apenas num tópico, A Morte e a Donzela expõe a hipocrisia das democracias ao sul do Equador, que pagam altíssimo preço em sofrimento humano por terem cedido à chantagem dos expoentes das ditaduras que bateram em retirada, mas permanecem em estado de prontidão (em graus variados, conforme o país). Esta questão se arma principalmente no conflito entre o jurista membro de um comitê federal de investigação dos crimes políticos e sua esposa, a vítima-sobrevivente do terrorismo de Estado. Em linha com os pressupostos estético-políticos de Ariel Dorfman, o texto foi pensado e escrito segundo as convenções modernizadas do teatro realista. Basta pensar que o dramaturgo imagina o principal da cena se desenrolando na sala de visitas da residência do casal e que um desdobramento pesado, no mau sentido mesmo, dessa idéia é o acúmulo de funções do diálogo. Em poucas palavras, uma produção que acatasse as convenções propostas pelo dramaturgo resultaria em espetáculo pesado, arrastado, difícil de se assistir. Percebendo a importância, inclusive política, dos problemas trabalhados e sugeridos pelo texto, e para melhor servi-los, a Tribo tratou de desobedecer, com requintes de miniaturista, cada detalhe da sua letra. Lançando mão de amplo repertório cênico, desenvolvido em quase vinte anos de experimentação, criou um espetáculo poderoso, de grande impacto visual. Desenvolveu cenas mudas, paralelas ao texto, que em alguns momentos o comenta, em outros o critica e, em outros ainda, explicita algumas de suas vitalidades. Um exemplo deste último caso é o momento, visualmente fortíssimo, em que Gerardo desenterra da areia uma corda de navio. No plano da dicção dos atores, foram criados ritmos, importações, texturas de voz, etc. que, aliados a uma movimentação minuciosamente coreografada, permanentemente impedem uma audição “natural” do texto. Tudo isso, mais os recursos cenográficos e adereços, de sonoplastia e iluminação, concorre para a criação de uma História (com maiúscula sim senhor) que põe tudo em cena: o presente, o passado, o enfrentamento dos interesses mesquinhos, os motivos torpes, o inconsciente, o pesadelo e, para não entrar numa enumeração infindável, através de Paulina, a reivindicação de uma vida em moldes mais humanos que, segundo Ariel Dorfman, talvez dependa mesmo da intervenção feminina. Para quem sempre advogou a total liberdade de tratamento do texto no teatro, por acreditar que a atitude dos criadores de um espetáculo em relação ao texto já é, ela mesma, muito significativa, assistir a esse trabalho do Ói Nóis Aqui Traveiz é uma alegria, pois ele demonstra cabalmente uma tese de Maiakóvski: o original deve ser alterado pela cena, corrigido e muitas vezes até mesmo contrariado se o objetivo for apresentar ao público uma experiência artística de alto nível e comprometida com os problemas de seu tempo.
Saltimbancos De Combate Fernando Peixoto (Zero Hora, 29 de março de 1997) Fascinante é o trabalho de permanente busca de uma linguagem cênica aprofundada no terreno ideológico e artístico desenvolvido desde 1978 pela Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre. Em espetáculos no múltiplo espaço de sua sala, o caminho tem sido o mergulho na análise da condição humana através de uma linguagem extremamente rica em símbolos e metáforas, ousando a investigação de uma comunicação penetrante com o público como Fim de Partida de Samuel Beckett, em 1986, Ostal (poucos espectadores ao redor de uma cama num pequeno quarto), produção de 1987, e Antígona, Ritos de Paixão e Morte, deslumbrante pesquisa de espaço e linguagem cênica, em 1990. Ou, mais recentemente, uma versão criativa, resultado de uma pesquisa ousada, Missa para Atores e Público sobre a Paixão e o Nascimento do Doutor Fausto, de Acordo com o Espírito de Nosso Tempo, de 1994. Ao mesmo tempo o grupo tem se empenhado num trabalho de rua que assume abertamente a retomada de um teatro político que instiga e provoca a consciência crítica, utilizando personagens em pernas-de-pau ou bonecos gigantescos, o humor e a denúncia à serviço de uma participação corajosa na abertura de uma reflexão democrática e progressista, rara no teatro brasileiro dos dias de hoje. O Ói Nóis chegou a colocar na rua um texto como A Exceção e a Regra de Bertolt Brecht, em 1987, e uma adaptação livre da peça Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, intitulada A História do Homem que Lutou sem Conhecer seu Grande Inimigo, produzida em1988, e retomou um texto exemplar do CPC, Deus Ajuda os Bão, de Arnaldo Jabor, trazendo a ação para os assustadores tempos do governo Collor, assim como desenvolveu uma dramaturgia própria e vigorosa em espetáculos de rua como Os Três Caminhos Percorridos por Honório dos Anjos e dos Diabos e Se Não Tem Pào Comam Bolo!, criações coletivas realizadas em 1993. O primeiro uma versão livre de uma peça de João Siqueira, a saga de um camponês que expulso da sua terra chega à cidade grande e se transforma em líder operário; a segunda, assumindo como referência inicial uma frase da rainha Maria Antonieta, da França, e recorrendo aos fatos históricos para penetrar no cotidiano brasileiro atual, discutindo tanto a fome como a opressão, a corrupção e a violência da classe política, e isto através de saltimbancos e contadores de história que, como afirma o grupo numa nota publicada num programa “de uma forma satírica e divertida cantam para o povo, nas ruas, o que a sociedade burguesa, procura esconder: a luta de classes”. É também de 1990, o mesmo ano de Antígona, a criação de um trabalho fascinante pela força poética e pela teatralidade, um espetáculo sem palavras, apenas deslumbrantes movimentos de corpos e máscaras, a Dança da Conquista que, segundo o grupo, “coloca em cena o maior genocídio da história da humanidade: a conquista da América pela Europa colonialista”. “Genocídio de que somos todos herdeiros, testemunhas e juizes.”E ainda: “Quinhentos anos depois, assistimos a nossa sociedade permitir que se leve adiante um verdadeiro extermínio em massa da nação Ianomani, último foco de presença autêntica, intocada, do índio em terras da América”. Começando a produzir no início de 1978, o Ói Nóis foi formado por um grupo de artistas e estudantes de teatro insatisfeitos, segundo eles, com o teatro e com o seu aprendizado. E preocupados com um trabalho que respondesse ao momento social: “Desde o início esteve ligado aos movimentos populares: a busca em sair do circuito habitual do teatro e realizar um teatro mais eficaz, um teatro de combate, presente no dia-a-dia da cidade, levou o grupo a atuar nas ruas”. E assim o Ói Nóis Aqui Traveiz vem participando em manifestações ecológicas e antimilitaristas contra o uso da energia atômica, as intervenções teatrais surgem em portas de fábricas e junto a protestos contra a violência política e econômica que sufoca os trabalhadores ou em atos contra o extermínio indígena e contra a violência aos operários, contra o FMI ou o perigo nuclear. Desde 1988, o grupo vem igualmente desenvolvendo projetos como Caminho para um Teatro Popular, criando um circuito regular de apresentações em vilas populares, viajando pelo país, em encontros e festivais, e também o projeto Teatro como Instrumento de Discussão Social, que procura despertar a organização de grupos culturais nas periferias através de oficinas em vilas e bairros longe do Centro. Na sala ou na rua, Beckett e Brecht, o ser humano em sua condição metafísica trágica ou vítima da luta de classes, a análise poética e crítica do indivíduo ou do coletivo: caminhos e opções aparentemente contraditórios, mas que se completam num trabalho teatral de criação coletiva que não se detém diante do já alcançado, que busca penetrar sempre mais fundo em sua inquietação e perplexidade, transformado em instrumento de reflexão e conscientização social e de combate à colonização e às massificações culturais. Desde 1984, o Ói Nóis Aqui Traveiz possui e valoriza sua sede de trabalho, seu espaço definido e criativo, um centro de pesquisa cênica e de busca de novas linguagens de comunicação teatral, uma referência expressiva e conhecida em nível nacional: a Terreira da Tribo é sem dúvida um ponto essencial do movimento cultural e artístico de Porto Alegre, do Rio Grande do Sul, do Brasil. Não é apenas um espaço para apresentação de espetáculos em múltiplas diversidades, mas é igualmente um local de trabalho em busca de uma narrativa sempre insatisfeita consigo mesma, em permanente estado de avanço e investigação. Todo esse sempre surpreendente trabalho de formação e informação precisa ter continuidade e para isso é essencial que este fascinante espaço seja sempre defendido, preservado e desenvolvido, para que essa instigante Tribo de Atuadores permaneça como um exemplo de coletivo de criação cultural em permanente estado de incontestável e dinâmico vigor criativo, orgulho da ação cultural gaúcha e nacional.
A Casa de Fausto sob o signo do Cruzeiro do Sul – O grupo brasileiro Ói Nóis Aqui Traveiz encena o Fausto de Goethe em Porto Alegre (Missa para atores e público sobre a paixão e o nascimento do Doutor Fausto de acordo com o espírito de nosso Tempo, 1994) Claudio Heeman (Zero Hora, abril de 1978) Porto Alegre, a capital do estado brasileiro do Rio Grande do Sul, fica perto da costa atlântica a meio caminho entre São Paulo e Montevidéu; com uma população de 1,4 milhões de habitantes, a cidade é uma das metrópoles mais meridionais do planeta. O desbravamento do país foi realizado no séc. XIX sobretudo por imigrantes italianos e alemães. Camponeses do Hunsrück, expatriados pela pobreza e pela fome, depararam-se aqui com uma região de colonização favorecida pelo clima. Quanto à superfície, o estado é maior do que a República Federal da Alemanha antes da reunificação. A sua população autóctone foi fortemente dizimada: por volta de meados do séc. XVIII, os portugueses e espanhóis se associaram para destruir um estado e os seus habitantes, um estado, que tinha dado aos aborígines um espaço de vida, de trabalho e de produção cultural sob o regime patriarcal da Companhia de Jesus. Esse estado religioso com traços peculiarmente socialistas perdurara quase cem anos; depois os exércitos de dois impérios coloniais destruíram essa formação histórica, aniquilando quase todos os índios. Porto Alegre possui não apenas quatros universidades (duas públicas e duas ligadas à instituições eclesiásticas). A cidade abriga também o Instituto Goethe – um dos sete filiais do Instituto Goethe, que testemunham no Brasil sobre a vida na Alemanha e ajudam a difundir a língua alemã. Através de palestras, exposições e projeções de filmes, cientistas e artistas alemães dão impulsos para a vida intelectual da cidade e da região e absorvem simultaneamente as suas experiências e os seus problemas: eis um intercâmbio cultural no sentido mais pleno e rico do termo. Em Porto Alegre, o Instituto Goethe, há muitos anos dirigido pelo Dr. Hartmut Becher, acumulou méritos especiais no seu empenho pela vida teatral da cidade, que funciona inteiramente sob o signo de grupos autônomos, necessitados de múltiplo apoio. Onde não há nenhum teatro on (grupos com cargos regularmente remunerados), não há também nenhum teatro off; os grupos autônomos não concorrem em pé de desigualdade com teatros municipais ou estaduais, mas aferem a qualidade do seu trabalho na comparação com os seus semelhantes – com outros grupos de teatro, que se formam para um trabalho feito na base do idealismo e fomentado em cada caso por patrocinadores. Onde não há contratações regulares dos artistas, o engajamento acaba sendo a base da atividade artística. Dentre as produções cênicas fomentadas pelo Instituto Goethe nos tempos mais recentes deve-se mencionar “Homem é homem” de Brecht, assim como “Eu, Feuerbach” de Tankred Dorst e “Homem branco e pele vermelha”, de George Tabori. A peça grotesca de Brecht sobre os militares é apresentada numa grande sala de teatro de propriedade do município por um conjunto formado exclusivamente por mulheres. Pode-se assistir aos diálogos do índio e do judeu no deserto da peça de Tabori na pequena sala do Instituto Goethe, excelentemente equipada. Já uma outra produção, apoiada pelo Instituto Goethe em conjunto com patrocinadores brasileiros, não necessita nem pode necessitar de um palco. Os atores e espectadores não se defrontam aqui naquela bipartição espacial, desenvolvida pelo teatro europeu no decurso de quase quatrocentos anos, em analogia ao confronto no culto divino entre o sacerdote no espaço do altar e a comunidade na nave da igreja. As duas partes, a atuante e a assistente, desenvolvem aqui em espaços sempre novos uma relação flutuante, que se reconfigura de uma cena a outra, que transforma os espectadores em participantes, sem que a diferença fundamental entre atuar e assistir fosse anulada. Mas ela não se deixa mais apreender naquela ordem fixa, que atribui todo o movimento em parte aos atores, em parte à decoração, concedendo aos espectadores a possibilidade da mudança de lugar somente nos intervalos. O que está separado para o freqüentador das salas de teatro há vários séculos: a fase de estar sentado diante da encenação que se comunica em imagens e a fase do caminhar antes do início da encenação, depois do seu término e nos intervalos, funde-se aqui numa unidade. Não são os atores e as cenografias que se movem diante do espectador; é o espectador que se move em espaços cênicos, que mudam de uma cena para outra. O que ocorre aqui é o renascimento daquele modo de representação do fim da Idade Média, no qual os espectadores passavam de um espaço de atuação cênica a outro, em meio à paisagem teatral, percorrendo as estações da história da paixão de Cristo como que num calvário cênico: cada estação era um lugar peculiar, cada transformação era um acontecimento, que convertia o espectador em andarilho, no andarilho que palmilhava a história do drama. O grupo teatral brasileiro, que logra fazer isso numa obra, que se subtraiu ao teatro da sua época e que parecia ter sido escrita para o teatro do futuro, chama-se “Ói Nóis Aqui Traveiz”, em alemão “Da sind wir wieder!”. O nome sugere uma confirmação da existência diante das forças, que tinham instituído em 1964 uma ditadura militar no Brasil, pensando que as forças, que se empenhavam por maior justiça social e por reformas, haveriam de desaparecer diante da sua brutalidade. O grupo, que se introduziu como aqueles que estão aqui outra vez, foi funda em 1977, numa época, na qual a dominação dos generais, atrás dos quais estavam os latifundiários da região equatorial no norte do Brasil, começou a desagregar-se: entrementes o conjunto se apresenta numa velha fábrica desocupada, cujo aluguel sempre é motivo de novas preocupações. O prédio construído em concreto armado está localizado num bairro metropolitano, cujos sintomas de decadência parecem estranhamente familiares aos visitantes do distante Hemisfério Norte; as cidades da RDA estava marcadas por esses sintomas de outra maneira. Parece que a decadência, o abandono, o arruinamento da infraestrutura
Um Teatro com Pedra nas Veias (Missa para atores e público sobre a paixão e o nascimento do Doutor Fausto de acordo com o espírito de nosso Tempo, 1994) Claudio Heeman (Revista-Programa, maio de 1994) Na rua Ramiro Barcelos, perto da igreja Santa Terezinha, numa pequena garagem que tinha sido boate, surgiu em 1978 um grupo de teatro. “Um teatro com pedra nas veias”, anunciavam os panfletos de divulgação. O nome do conjunto, em grafia propositadamente iletrada, era Ói Nóis Aqui Traveiz. Nesta identificação já dava para sentir a clara contestação aos padrões bem comportados. Um aviso de que o grupo se propunha tomar atitudes inusitadas e contestadoras. Paulo Flores aparecia como incentivador das atividades e Júlio Zanotta Vieira contribuía no papel de dramaturgia. A direção era colegiada. O Ói Nóis Aqui Traveiz provou logo ser diferente dos habituais teatreiros citadinos. Colocava-se em oposição aos padrões vigentes. Na forma e conteúdo os propósitos eram devastadores. Agressivo e radical, o Ói Nóis manifestava recusa absoluta frente à rotina do fazer teatral. Com muita energia lançava-se na quebra geral de moldes burgueses. Repudiava a tradição, as posturas elitistas e estetizantes da vanguarda comum. Nada de diversão ou acomodações estéticas. Revolução visceral. Um movimento que procurava mexer com a cabeça e a vida do público. Propunha intervenção na realidade. Declarava guerra as convenções e à ordem estabelecida. Apresentava convicções ideológicas radicais. Fazia quebra-quebra em busca de uma nova sociedade. Um trabalho de conscientização da platéia. As denúncias exorcizavam o condicionamento que os poderes discricionários exercem sobre os indivíduos. A exploração do homem pelo homem, as arbitrariedades políticas, o capitalismo, as mil formas de opressão com que a sociedade convive foram escolhidos como alvo para críticas. Nesta linha de tiro acontecia a explosão criativa das encenações. A forma anticonvencional propunha um ritual liberador de forças instintivas e sugestões anárquicas. Inconformismo cheio de ousadia e inovação. Além de tudo, fora de cena, o grupo assumia uma militância coerente com suas visões e projeções cênicas. No andamento de um ritmo grave o Ói Nóis adotou uma forma ritualística, onde a nudez, o envolvimento físico com a platéia, a pantomima, o discurso irracional, a ação metaforizada, a abolição do palco neoclássico, a duração derramada, formaram elementos expositivos marcantes e deram personalidade própria ao grupo. Com aparência e timbre de um acontecimento apocalíptico. Hoje o conjunto possui sede – a Terreira da Tribo – onde pode experimentar à vontade quando não se encontra em vigiliatura pelas ruas e vilas populares. Vários prêmios reconheceram a qualidade das propostas. E o Ói Nóis Aqui Traveiz prossegue em seu trabalho colegiado na preocupação de analisar a sociedade contemporânea, denunciar problemas e pugnar pelo oprimido. Coerente com seus princípios e consciente do lugar especial que conquistou no panorama da atividade teatral gaúcha é uma força incontestável. Tem voz política e presença cênica afirmadas.
Os Ritos da Liberdade (Antígona, Ritos de Paixão e Morte, 1990) Marco Weissheimer (Trinta dias de cultura – jan.fev.mar. 1991) Qual a origem, a essência do teatro? Herdeiros de Antonin Artaud, na busca de um teatro que recupere sua identidade original – o contato humano concreto – os atuadores do Ói Nóis Aqui Traveiz foram buscar na Antiga Grécia, a Tragédia de Antígona, de Sófocles, uma defesa da desobediência civil do indivíduo contra a opressão do Estado, do Poder. São quase três horas de espetáculo, de contato contínuo dos atores com o público (podem entrar 50 pessoas no máximo em cada sessão), onde, em certos momentos, o texto adquire uma posição secundária. Os alvos são as sensações do público. É a busca de um teatro participativo que uma coração e mente na vivência de um drama humano. Antígona Ritos de Paixão e Morte arranca o público de sua cômoda posição de espectador. Para assistir à peça é preciso usar coração, cérebro e as pernas. O contato com os atores é direto. Olho no olho, pele na pele. Envolve todos os sentidos com cheiro, sons, cores e movimentos. Na relação entre atores e público, a fragmentação humana fica evidente. O medo do olhar e do toque humano. O desequilíbrio racional e emotivo, hoje dominante, reflete-se na maneira como as pessoas estão vivendo e na forma como assistem a uma peça apresentada de quintas a domingos, às 21 horas, na Terreira da Tribo (rua José do Patrocínio), em Porto Alegre. O cenário é um deserto e a cidade é a antiga Tebas. O chão está coberto de areia, há uma ponte de corda e madeira, um lago, uma ossada. No enredo original de Sófocles, Antígona (Beatriz Britto) entra em conflito com o rei Creonte (Paulo Flores), por querer enterrar seu irmão Polinice, morto em batalha contra os soldados de Tebas. Creonte julga Polinice um traidor e ordena que seus restos apodreçam sob o sol. Entram em conflito o indivíduo e o poder. Mas, do texto original, pouco foi preservado. Ao texto de Sófocles, somam-se leituras de Bertolt Brecht, Jean Anouilh, Jean Paul Sartre, Albert Camus, Antonin Artaud, Anais Nin, entre outros. Segundo a atuadora Beatriz Britto, um teatro de comunhão pede a criação de um novo espaço, que envolva ator e espectador, fim da divisão entre palco e platéia. É a defesa do contato físico, direto com o público, que o faça sair da condição passiva à que foi acostumado. A versão do Ói Nóis para Antígona envolve textos de ruptura com a postura conservadora e alienante de vida. Foram misturadas reflexões materialistas e existencialistas junto ao original de Sófocles. O resultado é estimulante. O principal inimigo da liberdade individual não é o Estado, o Poder, mas a omissão do homem frente a situações de conflito. O obstáculo para uma vida harmônica e prazerosa é o embrutecimento dos sentidos e da razão, a fragmentação de corpo e cérebro. Ói Nóis Aqui Traveiz tenta juntar esses cacos e dotá-los de um sentido. Procura demolir a fronteira entre as pessoas, que já não se permitem o toque, o olhar. Viver vale a pena, desde que seja para conquistar a liberdade através dos próprios atos. A origem do Teatro é a comunhão das pessoas, o encontro humano, momento de êxtase e sensação. O Teatro é talvez a última chance do homem ser aquilo que deve ser, um ser integral e integrado com seus semelhantes, não através do embrutecimento, mas da sensibilidade criadora. “Ser tocado! Acaso sabem o que é ser tocado por um ser humano?” – perguntou certa vez Anais Nin. Assistindo Antígona, a resposta é de uma clareza incontestável: o toque de outra pessoa é algo estranho, ameaçador; a sensibilidade foi embrutecida por uma vida vazia de significados reais. Para Paulo Flores, um dos fundadores da Tribo, nesse final de milênio, o Teatro permanece como o único lugar reservado a resgatar a autenticidade humana inicial; desalienar o homem moderno, restituí-lo à sua verdade carnal e original. O projeto pesquisa Raízes do Teatro não se encerra com Antígona. O grupo pretende evoluir para vivências teatrais, que não tenham preocupação com o produto final. “Que seja a própria cultura em processo, onde as pessoas se entreguem a uma experiência de vida. Que abra um espaço para o exercício de sensibilização do corpo e da imaginação através da convivência, sem temas e roteiros definidos e sem qualquer preocupação com a encenação final”, escreveu Paulo Flores. “Queremos descobrir as grandes paixões essenciais ocultas pelo homem falsamente civilizado”, diz ele. Após a apresentação de Antígona atores e público conversam numa sala sobre o que sentiram. O objetivo da peça é sacudir as pessoas, fazê-las pensar sobre suas trajetórias. A vida só tem sentido enquanto desafio de construção. Ligar os fragmentos e dotá-los de um sentido, dar uma história a nossas vidas. Vive-se hoje num mundo repleto de informações. A rede de comunicação fecha-se sobre o mundo exterior e estamos presos a ela, sem entender muita coisa. Os fatos se sucedem e vivemos versões e repercussões. Poucos conseguem gerar e vivenciar atitudes históricas. Não, assistir às novelas globais não é uma atitude histórica. Ainda mais quando este ato repete-se diariamente. Os cães coçam suas pulgas todos os dias. Nossos dias precisam de gestos únicos, que revelem individualidades cheias de vida, com desejo de expansão. Isso é transcender o círculo da rotina. Isso é vier. Penso na relação entre a história da humanidade e nossas histórias individuais. Que pessoa é capaz de reconstituir sua trajetória pessoal, a evolução de seu pensamento (quando há), as mudanças de posição, de comportamento. Restam apenas fragmentos, pedaços de memórias empoeiradas. Na esmagadora maioria dos casos, as pessoas vivem construindo coisas incompletas, fabricando ruínas, destroços. A consciência tenta construir um sentido para a sucessão de eventos que marcam uma existência. Perde-se em labirintos. A vida acaba resumindo-se em sensações repetidas à exaustão. Mesmice existencial é uma marca da espécie. Prolifera um estado de absoluto desprezo pelo momento presente, caracterizado pela repetição de
O experimentalismo que está dando certo (Ostal – Rito Teatral, 1987) Claudio Heemann (Zero Hora, 02 de setembro de 1987) O Grupo Ói Nóis Aqui Traveiz assumiu outra atitude pioneira entre nós. Desta vez como cultor de repertório. Apresenta em seu espaço na Terreira da Tribo, em dias alternados, suas três últimas produções. São elas “A Exceção e a Regra” de Bertolt Brecht, uma experiência de teatro de sombras intitulada “Manchas no Lençol” e “Ostal” de Aldo Rostagno, ritual cênico típico do estilo que tem distinguido a atuação do conjunto de Paulo Flores. Como sempre, o repúdio aos valores dominantes e ao palco tradicional, com o pensamento na transformação da sociedade, caracterizam a atuação do grupo. A encenação de celebrações contestatórias que é a forma de expressão mais característica do radicalismo do Ói Nóis Aqui Traveiz tem sido acompanhada nas últimas temporadas pela utilização de obras de autores consagrados. Depois de “As Domésticas”, de Jean Genet, houve, de Samuel Beckett, “Fim de Partida”. Agora chegou a vez de Bertolt Brecht, antecipando Adamov que será o próximo dramaturgo no repertório do conjunto. “A Exceção e a Regra’ é uma das conhecidas pequenas peças didáticas que Brecht compôs de maneira silogística, fazendo crítica ao capitalismo. A obra possui o tom sarcástico característico de Brecht e analisa com dialética penetrante a relação oprimido-opressor. Em contraponto à sobriedade matemática do texto, “A Exceção e a Regra” do Ói Nóis Aqui Traveiz colocou vigor juvenil numa visão tropicalista da conhecida obra. A clareza racional do texto encontrou na montagem um traçado caricatural. Este tratamento não esconde uma inspiração expressionista. Os personagens centrais aparecem de modo grotesco com máscaras semelhantes às da comédia dell’arte. O juiz é feito por dois atores dentro de uma só roupa, ficando gigantesco. Há um coro que dá ênfase ginástica à movimentação. Os figurantes cumprem determinadas vezes a função de cenário vivo. Com toda a vibração e o ritmo do samba, a música é popular e bem brasileira. Assim, a vitalidade da performance se processa com certo ímpeto carnavalesco. Devido ao dinamismo com que as canções são interpretadas e o eco do tambor no recinto da apresentação (há um conjunto musical em cena) algumas letras essenciais, notadamente no prólogo, não ficam muito claras. Mas quando Zé da Terreira e um trio feminino cantam sozinhos, o problema desaparece. No mais, personagens e situações bem definidos, a lição desejada pelo texto passa com facilidade para a platéia. “A Exceção e a Regra” discorre sobre a injustiça da justiça comprometida com o poder oligárquico e a lógica da opressão. Essa justiça não aceita a bondade como possível nas circunstâncias habituais de relacionamento entre empregado e patrão. A regra é a luta entre as classes; a exceção é o gesto cordial entre representantes de camadas sociais diferentes. Por isso, o comerciante da peça mata o carregador supondo que ele só poderia querer agredi-lo quando se aproxima para um gesto amigo. Sombras Com os jovens das oficinas de Experimentação e Pesquisa Cênica da Terreira da Tribo, o segundo dos três espetáculos do Ói Nóis Aqui Traveiz em cartaz é mais um exercício técnico do que qualquer outra coisa. Chama-se matreiramente “Manchas no Lençol”. Mas trata-se apenas de algumas experiências com o teatro de sombras. Atores e objetos cenográficos são iluminados por trás, lançando silhuetas bem delineadas sobre uma tela. Na frente dela, o público recebe as imagens e movimentos com o fascínio de quem assiste a um antepassado da animação cinematográfica. Pequenos truques, efeitos sonoros, luz colorida, humor e a linguagem visual do teatro de sombras conquistam logo a platéia com o apelo pantomímico e fascínio ilusionista. Em cinco cenas breves, “Manchas no lençol”, posiciona-se como exercício e divertimento. Comprova a inquietação do Ói Nóis Aqui Traveiz diante das possibilidades de linguagem cênica. As exigências de habilidade artesanal do teatro de sombras foram bem atendidas. Sugerem até que o teatro de sombras do “Ói Nóis” poderia aprofundar o uso desta técnica numa realização de grande fôlego. A força das imagens obtidas com as sombras oferece um campo fértil para invenção e fantasia. Mergulho psíquico Porém, é com “Ostal” que o Ói Nóis Aqui Traveiz se propõe mexer mais fundo com a platéia. Apenas vinte pessoas podem assistir a cada representação da peça. Os espectadores são introduzidos na área cênica (ótima decor de Isabella Lacerda) por um médico em traje cirúrgico. Convidado a usar máscaras de sala de operação, o espectador é levado ao quarto de uma paciente. Em volta da cama da doente, estabelece-se o contato com o mundo de uma esquizofrênica. Acessos, alucinações, sofrimento, são delineados numa tensa e claustrofóbica visita à realidade dos conflitos psíquicos. Nenhuma palavra é pronunciada durante a representação. Simplesmente os espectadores entram na intimidade de uma situação extrema. “Ostal” foi criado pelo grupo italiano CFR (abreviação de confrontação) sob a direção de Aldo Rostagno. O termo “Ostal” é uma palavra do francês arcaico e significa lar-templo. A obra quer retratar o processo esquizofrênico de um indivíduo e denunciar, simbolicamente, a violência do processo de estruturação da personalidade que pode acontecer com a destruição da parte mais sensível das pessoas. Poderia usar como epígrafe aqueles versos de Mário Quintana: “Da primeira em que me assassinaram, perdi o jeito de sorrir que eu tinha”. Interessa ao “Ói Nóis Aqui Traveiz” colocar que a destruição mental de um indivíduo é obra de uma sociedade cruel e condicionamentos desumanos. A encenação de “Ostal”, com sua ambientação forte e clima denso, consegue ser bastante contundente ao colocar o espectador dentro de um quadro vivo que oscila entre a insanidade, o sonho e a ameaça. Aliás, alguns espectadores não suportam a atmosfera da peça e se retiram durante a representação. Arlete Cunha, no papel da doente, domina com muita interioridade o sentido ritual da representação, muito bem secundada por Maria Rosa, Sérgio Etchichurry, Renan Costa e os efeitos luminosos e sonoros. A cenografia com seu túnel misterioso, a casa imensa, os alçapões-surpresa, a mesa de jantar depredada, é extremamente eficiente em criar um espaço cênico apropriado.
Faca e gesto conseqüentes (Fim de Partida, 1986) Antônio Hohlfeldt (Diário do Sul, 22 de dezembro de 1986) Beckett é conhecido por seu niilismo e sua descrença em qualquer valor que ultrapasse a humanidade. Mais do que isso, o grande escritor irlandês desacredita na própria criatura humana, que visualiza como um ser sem caminho e sem lógica, sobrevivendo sem qualquer objetivo na vida, ou, quando os tem, sendo enganado por um falso objetivo (como em “Esperando Godot”, já que o tal Godot, em última análise, jamais virá porque jamais pensou em vir). No caso de “Fim de Partida”, pode-se dividir a situação dramática em duas abordagens. A mais imediata é exatamente aquela que, em nível de realidade, pode ser desprendida das alusões, nem tão escassas assim, que pontuam todo o texto, talvez um dos primeiros trabalhos literários a abordarem a traumatizante experiência da bomba nuclear dos Estados Unidos em 1945. Pode-se pressupor que há muito aqueles quatro sobrevivem em uma construção quase subterrânea, que os salvou da morte certa em uma explosão nuclear. Contando com alguns mantimentos, vêm sobrevivendo, ainda que a escassez se acentue. Parcos – quase nenhum, são os sinais de vida remanescentes: uma pulga, um rato e eles mesmos. Odiando-se, perdem o sentido das horas, mas teimam em mantê-las no relógio, que, afinal, funciona, como uma espécie de “enganador do tempo” marcando, na verdade, pela hora de tomar remédios, contar uma (sempre a mesma) história, comer qualquer coisa, levantar, deitar, etc. Enquanto isso, o criado anda de uma janela para outra, a tentar descobrir qualquer sinal de vida, o que parece ocorrer no final, quando ele se prepara para sair, mas então, se vê, definitivamente, preso ao grupo, pois, enfim, também perdeu a articulação de suas pernas e do próprio corpo, condenado que está àquela eterna companhia, após a morte dos dois velhos. O outro nível de análise se dá em nível filosófico, retomando as antigas preocupações de Beckett. A situação pode ser vista, assim, como uma imagem da própria vida, à qual estamos condenados, sem saída, vivendo esterilmente em relação a nossos semelhantes, negando-nos a nossa própria humanidade, distanciando-nos permanentemente de qualquer possibilidade de uma comunicação mais efetiva com nosso semelhante. Neste mundo, não há qualquer crença numa vida posterior: ali é ruim, lá fora, ainda pior (isto é, após a morte). Neste sentido, a peça coloca-se como um círculo fechado sobre si mesma, o que o cenário bem traduz, ao introduzir o espectador por um corredor circular, feito em zinco até o quente círculo coberto por plástico negro, onde se dá a encenação. O realismo da cenarização de Isabela Lacerda, combinado com o aplique de grossas camadas de maquiagem que, com o calor despregam da pele dos atores, e mais os figurinos criam um clima de opressão, de apodrecimento e decomposição impressionantes. O contraponto criado, ao início e final da peça, com a trilha sonora, deixando, contudo, todo o tempo central da encenação entregue exclusivamente ao diálogo dos personagens, ratifica esta impressão: é como se as palavras fossem facas a esgravatarem as entranhas de cada um. A dramaticidade, radicalizada mantém-se, contudo, sob permanente controle, graças a uma interpretação que, ao contrário, é quase neutra, com um controle total dos intérpretes em gestos lentos, que se desfazem à medida mesmo em que ocorrem, como se fosse impossível repeti-los alguns segundos depois. Apesar do calor e da inoportunidade desta temporada, nesta altura do ano, a encenação de “Fim de Partida” pelo grupo “Ói nóis aqui” coloca-se, contudo, sem sombra de dúvidas, dentre os mais importantes espetáculos produzidos entre nós nesta temporada, e revela-nos um grupo bem mais conseqüente do que se poderia esperar, a partir de seus espetáculos anteriores. Numa temporada que se caracterizou pela boa qualidade da maioria dos espetáculos apresentados, o grupo “Ói nóis aqui” uma vez mais se destaca, desafiando o público e propondo, inesperadamente, um trabalho de grande profundidade, e que, inevitavelmente, marcará nosso teatro, mesmo que a escassez de público para espetáculos desse gênero seja também evidente.
Ritual Sado-Masoquista Que Envolve A Platéia (A Felicidade não Esperneia, Patati e Patatá, 1978) Claudio Heeman (Zero Hora, abril de 1978) Não se sabe bem se “Ói Nóis Aqui Traveiz” é o nome da casa de espetáculos da Rua Ramiro Barcelos (situada “onde a Cristóvão Colombo põe ovo em pé”, segundo a divulgação do grupo que a está lançando), se é o próprio nome da companhia que faz o espetáculo inicial, ou se é uma promessa de perseverança no terreno escorregadio do Teatro Contestatório de Vanguarda. “Um teatro com pedra nas veias” se anuncia o “Ói Nóis Aqui Traveiz”. Realmente, na casa que escolheram entre a Cristóvão e a Farrapos, há muitas pedras nas paredes, um teto sem forro, com vigas e telhas à mostra, bancos de madeira tosca para o público sentar (-a capacidade da casa é reduzida, precisa-se chegar cedo). – e no centro do recinto, cercada por arame farpado, a área onde os atores evoluem. Sob a direção de Paulo Flores, que também interpreta um dos papéis na segunda das duas peças que compõem o espetáculo, são interpretados dois textos curtos de Zanotta Vieira, o dramaturgo em residência do “Ói Nóis”. Na realidade, estes textos são pretextos para o anarquismo desenfreado da encenação que pretende, a exemplo de certos trabalhos de José Celso Martinez Correa, a liberação de forças anárquicas e caóticas, destruidoras de convenções e estratificações. Na busca de uma linguagem teatral crua, debochada, violenta, livre, grotesca, que vai do grand-guignol ao protesto, do surrealismo à contestação. Os atores se atiram a seus papéis (sem alusão a certos aspectos cenográficos do espetáculo, são feitos de monturos de jornais rasgados) com grunhidos, contorções, epilepsias e um rude humor absurdo, numa pesada celebração de anarquia. A destruição é generalizada, até mesmo os textos utilizados soçobram, sem no entanto deixar de nos fazer sentir que há em tudo uma crítica sistemática às instituições, ao mundo organizado e à sociedade burguesa. A agressão chega até as roupas dos espectadores que recebem banhos de leite ou nacos de carne crua tirados aparentemente das entranhas de um personagem, que é operado em cena por possíveis médicos-carrascos – mercenários – loucos levemente medievais… Como espetáculo contestatório de vanguarda, com seus nus agressivos, cantorias insultuosas, ironias e sarcasmos, marcações alucinadas e o doido desenho da ação é um verdadeiro “happening”. O ritmo pausado e os absurdos das atitudes buscam uma denúncia global de um mundo em decomposição, bárbaro, cômico, cruel e paranóico. E o espetáculo tem força e convicção, com uma atmosfera densa e coerente, criada com a coragem e a invenção que estamos acostumados a ver nos teatros experimentais de Londres, Greenwich Village ou Paris. A primeira peça chama-se “A Divina Proporção” e a sociedade de consumo é o alvo mais óbvio. Mas é na segunda peça do espetáculo, “A Felicidade, Não Esperneia, Patati, Patatá”, que as forças irracionais se soltam com mais ímpeto, nos levando em tom delirante a um universo próximo de Genet, Arrabal e Artaud. Há vinte anos, Porto Alegre não produzia um espetáculo com propósitos tão devastadores. Resta esperar que o “Ói Nóis Aqui Traveiz” não caia no beco sem saída do ritual bárbaro que por tudo destruir fica sem ouvintes e sem ter para onde ir, não conseguindo depois encontrar ferramentas para construir um mundo novo, que sem dúvida deve estar escondido no fundo de sua fúria iconoclasta.
Propósitos devastadores (A Bicicleta do Condenado, 1978) Claudio Heeman (Zero Hora, 11 de dezembro de 1978) O teatro “Ói Nóis Aqui Traveiz” está de novo em pleno delírio orgiástico, encenando mais um de seus rituais bárbaros. Anárquico e selvagem, o atual cartaz do teatro de vanguarda da rua Ramiro Barcellos é uma súmula de atrocidades, uma espécie de missa negra, primitiva e alucinada. Evidentemente é um cerimonial de teor simbólico e hiper-realista. Seu propósito é comprar o horror e a selvageria que o espetáculo mostra, com a sociedade vigente, desnudando a irreprimível barbárie que vive embaixo das máscaras da lei, da ordem, da justiça e da civilização. Nada existe no mundo a não ser uma terrível câmara de torturas movida por forças irracionais. Desta vez, o “Ói Nóis” está usando como pretexto uma pequena obra de Arrabal. Trata-se de “A Bicicleta do Condenado”, onde um jovem, que é finalmente assassinado por seus carcereiros, sonha com amor e liberdade, enquanto procura viver, mesmo estando preso, num universo bestial, violento e opressivo. A sala de espetáculos do “Ói Nóis”, com suas telhas à mostra, falta de forro e paredes cheias de pedras irregulares, está quase transformada numa arena romana. Os atores brigam e revoluteiam no chão que está meio cheio de areia. Alguns sacos com terra e tijolos empilhados servem precariamente para acomodar o público. É óbvio que não pretendem acomodar o público, mas sim, incomodá-lo, criar desconforto físico. Pois o espetáculo não é outra coisa que um “happening” composto de lutas e servícias em que o público é envolvido, até fisicamente, durante vários instantes. Torturas, combates corporais, ataques sexuais simulados nos quais os atores se envolvem, terminam por atingir o público. Assim, a platéia ér agarrada, empurrada, banhada de areia, de suor, involuntariamente participando de ações violentas, crueldades e dos abusos que os intérpretes sofrem uns dos outros, rolando pela areia, manietados por cordas, despidos ou grotescamente caracterizados. A platéia fica envolvida num esquema de acontecimentos bárbaros. Grunhidos, urros de dor, resfolegar de gozo sexual, gritos, obscenidades gestuais, atos cruentos, há de tudo no espetáculo. É um festival bárbaro, um ritual sado-masoquista, catártico, numa terra selvagem. Tudo é dominado pela arbitrariedade e violência e uma avassaladora animalidade. Um jogo primitivo de prazer e dor entre fortes e fracos, que se revezam em papéis ativos e passivos. O espectador é agarrado, amassado, sacudido, empurrado, banhado de areia. Fica colocado no meio de lutas e gozos. Recebe em close-up a visão de partes anatômicas dos atores que, em filmes como “Laranja Mecânica”, a censura esconde com bolas pretas. Ao fim do espetáculo, o público sai do “teatro” um pouco agitado, um pouco diferente, tocado por muitos estímulos sensíveis. Afinal, ao menos um grão de areia entrou em seu sapato ou em sua orelha. Creio que o propósito do “Ói Nóis Aqui Traveiz” é exatamente este: colocar uma pedrinha dentro da vida de cada um dos participantes de sua platéia. Gostaria de saber até onde a provocação que é feita ao público, no sentido de participação não solicitada, poderia ser respondida à altura, pela platéia. Se em algum espetáculo o público participasse efetivamente, envolvendo-se na ação, que resposta teriam os atores? Que rumo tomaria o espetáculo? O “Ói Nóis” aceitaria um espetáculo em que a participação do público tornasse imprevisível o rumo dos acontecimentos? A total interferência no planejamento cênico? A destruição das marcações pré-determinadas? Que tal convidar especialmente uma platéia disposta a tudo, para chegarmos à situação-limite a conclusões sobre este tipo de teatro experimental? Será que a ferocidade do espetáculo encontraria parceiros da parte do público? Haveria uma nivelação animalesca? Eis uma experiência que a experimentação do “Ói Nóis Aqui Traveiz” deveria experimentar. Tudo em nome da pesquisa artística, da linguagem teatral e do progresso da sociedade. Talvez se descobrisse os limites do teatro da crueldade…
A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz estreia no dia 3 de março a sua nova encenação de Teatro de Rua: “UBU TROPICAL”. O espetáculo será às 17 horas no Parque da Redenção, próximo ao Monumento ao Expedicionário. O espetáculo volta a ser apresentado nos dias 10 e 17 de março no mesmo local e horário. Os bufões do Ói Nóis Aqui Traveiz vão contar a história do Pai Ubu, símbolo do cinismo, destruição e estupidez. “Ubu Tropical” narra as peripécias de uma personagem grotesca e cruel que incitado por Mãe Ubu assassina o Rei da Polônia e coroa a si mesmo, iniciando uma longa serie de atrocidades que inclui traições, roubos, corrupção e assassinatos. Personagem ambicioso, covarde e irracional, o legendário Pai Ubu relembra, em chave humorística, o que o Brasil viveu nos últimos anos com um governante autoritário e demente. A personagem Pai Ubu foi criada pelo francês Alfred Jarry (1873-1907) precursor do teatro contemporâneo. Fundou uma nova concepção estética e ideológica de onde beberam as vanguardas do século XX, como dadaístas, surrealistas, o teatro do absurdo, e grande parte do humor grotesco atual. Jarry desenvolveu uma interessante saga com as peças Ubu Rei, Ubu Cornudo, Ubu Acorrentado e Ubu na Colina, entre outras, de comedia bufa e as vezes, escatológica e absurda. A provocação de Ubu chega inclusive ao universo da linguagem inventando palavras, e chamando atenção para um mundo aparentemente ordenado e progressista, mas que a todo momento cria os seus brutais Ubus. A encenação do Ói Nóis Aqui Traveiz parte da figura do bufão. São os atuadores como bufões que encenam a peça. O bufão é o ser dos paradoxos, das antíteses, o personagem do avesso e do direito, da negação e da afirmação. Sua função é de dizer alto o que se pensa baixo: ele desvela o não-dito, o interdito, o latente ou o recalcado. O bufão está ligado à rua, à praça, sendo o representante de uma reunião de vozes de contestação e de transgressão. O Ói Nóis Aqui Traveiz começou a sua pesquisa sobre a personagem Pai Ubu ainda durante a pandemia em 2021. Neste ano desenvolveu um Seminário e uma Oficina sobre a relação da personagem de Jarry com o Tropicalismo e o conceito modernista de Antropofagia criado por Oswald de Andrade. Dando seguimento ao estudo apresentou nas ruas a intervenção cênica Parada Ubuesca e em 2022 criou e produziu o filme curta metragem ‘Ubu Tropical’. Durante 2023 desenvolveu esta nova criação coletiva para o Teatro de Rua. Na criação coletiva “Ubu Tropical”, com música original de Johann Alex de Souza, estão em cena os atuadores Rafael Torres (Pai Ubu), Helen Sierra (Mãe Ubu), Marta Haas, Keter Velho, Eugênio Barboza, Roberto Corbo, Lucas Gheller, Márcio Leandro, Alex Pantera, Jules Bemfica, Gengiscan, Ellen Hiromi, Kayzee Fashola, Milena Moreira, Fabrício Miranda e Daniel Steil. Na parte técnica e contrarregragem estão Tânia Farias, Clélio Cardoso e Paulo Flores. A montagem de “Ubu Tropical” faz parte do Projeto Arte Pública – Criação e Formação. Uma realização da FUNARTE (Fundação Nacional das Artes) e Ministério da Cultura com recursos da emenda parlamentar da deputada federal Fernanda Melchionna. Fotos: Eugênio Barboza Anterior Próximo