A ação Caminho Para Um Teatro Popular continua no mês de maio com apresentações do espetáculo de teatro de rua “O Amargo Santo da Purificação” no “O Amargo Santo da Purificação – Uma Visão Alegórica e Barroca da Vida, Paixão e Morte do Revolucionário Carlos Marighella”, encenação conta a história de um herói popular que os setores dominantes tentaram banir da cena nacional durante décadas. A dramaturgia elaborada pelo Ói Nóis Aqui Traveiz parte dos poemas escritos por Carlos Marighella que transformados em canções são o fio condutor da narrativa. Utilizando a plasticidade das máscaras, de elementos da cultura afro-brasileira e figurinos com fortes signos, a encenação cria uma fusão do ritual com o teatro dança. A peça recebeu diversos prêmios e percorreu a maioria dos estados brasileiros, apresentando em capitais, cidades do interior e também em assentamentos rurais. Com uma riqueza de detalhes e uma nova relação com a estética de rua, a criação coletiva resgata uma parte importante da história do nosso país, trazendo para esse grande público do teatro de rua capítulos decisivos da nossa vida política e social. Sem trair a sua vocação artística instauram a alegria e a indignação nos espectadores. Caminho Para Um Teatro Popular – Circuito de teatro de rua em bairros populares de Porto Alegre é um Projeto realizado pela Secretaria Municipal da Cultura através de Emenda do Vereador Robaina.
Na semana que completa 46 anos de trajetória, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz rememora os 60 anos do Golpe Militar de 1964. Com apresentações do espetáculo de teatro de rua “O Amargo Santo da Purificação” no dia 29 de março, às 16 horas, no Parque Mascarenhas de Moraes, no bairro Humaitá, e no dia 31 de março, às 16 horas, no Parque da Redenção próximo ao Espelho d’Água, e no dia 1 de abril apresenta a performance “Onde? Ação n. 2”, ao meio-dia, na Esquina Democrática (Rua dos Andradas com Av. Borges de Medeiros). “O Amargo Santo da Purificação – Uma Visão Alegórica e Barroca da Vida, Paixão e Morte do Revolucionário Carlos Marighella”, encenação conta a história de um herói popular que os setores dominantes tentaram banir da cena nacional durante décadas. A dramaturgia elaborada pelo Ói Nóis Aqui Traveiz parte dos poemas escritos por Carlos Marighella que transformados em canções são o fio condutor da narrativa. Utilizando a plasticidade das máscaras, de elementos da cultura afro-brasileira e figurinos com fortes signos, a encenação cria uma fusão do ritual com o teatro dança. A peça recebeu diversos prêmios e percorreu a maioria dos estados brasileiros, apresentando em capitais, cidades do interior e também em assentamentos rurais. Com uma riqueza de detalhes e uma nova relação com a estética de rua, a criação coletiva resgata uma parte importante da história do nosso país, trazendo para esse grande público do teatro de rua capítulos decisivos da nossa vida política e social. Sem trair a sua vocação artística instauram a alegria e a indignação nos espectadores. A performance “Onde? Ação n. 2” de forma poética provoca reflexões sobre o nosso passado recente e as feridas abertas pela ditadura militar. Na performance a relação de mulheres com cadeiras vazias de pessoas ausentes. No final, durante alguns minutos, a mulheres lembram os nomes dos desaparecidos políticos do Brasil. A ação performática se soma ao movimento de milhares de brasileiros que exigem que o Governo Federal proceda a investigação sobre o paradeiro das vítimas desaparecidas durante o regime militar, identifique e entregue os restos mortais aos seus familiares e aplique efetivamente punições aos responsáveis. “Onde? Ação n. 2” vem sendo encenada em diversas cidades brasileiras, tendo já realizado circuito de apresentações na Argentina e Cuba. As apresentações fazem parte do evento nacional de rememoração dos 60 anos do golpe civil-militar no Brasil, junto com o Coletivo Testemunho e Ação/SIG, que integra a Coalizão Brasil por Memória Verdade Justiça; e marcam a abertura do Projeto Caminho Para Um Teatro Popular – Circuito de teatro de rua em bairros populares de Porto Alegre. Projeto realizado através de Emenda do Vereador Robaina. Tendo como base o Teatro Ritual de Antonin Artaud e o Teatro Épico de Bertolt Brecht, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz bebeu de diversas fontes cênicas durante a sua trajetória, como o teatro revolucionário do Living Theatre, o trabalho de ações físicas dos mestres europeus Stanislavsky, Meierhold, Grotowski e Eugênio Barba, e dos brasileiros Augusto Boal (Teatro do Oprimido), José Celso Martinez Corrêa (Teatro Oficina) e Amir Haddad (Tá Na Rua). Nesses quarenta e seis anos criou encenações que marcaram o teatro brasileiro como Ostal, Antígona Ritos de Paixão e Morte, Fausto, A Saga de Canudos, Kassandra In Process, O Amargo Santo da Purificação e Medeia Vozes. Acreditando no Teatro como um modo de vida, o Ói Nóis Aqui Traveiz desde a sua origem dissemina ideias e práticas coletivas, de autonomia e liberdade, compartilhando a experiência de convivência e de laboratório teatral. Fotos de Mariana Rotili.
Nos dias 18 e 21 de março, às 19 horas, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz estará realizando os webinários “Processos Criativos em Teatro”, na segunda-feira, e “Do Jogo a Cena – Construindo Aprendizagens”, na quinta-feira, transmitido pelo youtube.com/oinoisaquitraveiz com acessibilidade comunicacional na linguagem de libras. “Processos Criativos em Teatro” reunirá para uma conversa sobre a Formação em Teatro no nosso país a dramaturga e diretora teatral Rosyane Trotta, professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), o ator e pesquisador Narciso Telles, professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e a atuadora, diretora, atriz pesquisadora Tânia Farias, professora e coordenadora da Escola de Teatro Popular da Terreira da Tribo. O encontro terá a mediação da atuadora Marta Haas, doutora em Educação. “Do Jogo a Cena – Construindo Aprendizagens” reunirá para uma conversa sobre a criação teatral o ator, diretor e gestor cultural Chico Pelúcio, integrante do Grupo Galpão de Belo Horizonte, a diretora teatral e professora Fran Teixeira, do Grupo Teatro Máquina de Fortaleza e o ator, diretor e dramaturgo Jé Oliveira, criador do Coletivo Negro de São Paulo. O encontro terá a mediação da atuadora Tânia Farias. Os webinários fazem parte do Projeto Arte Pública – Criação e Formação. Uma realização da FUNARTE (Fundação Nacional das Artes) e Ministério da Cultura com recursos da emenda parlamentar da deputada federal Fernanda Melchionna. O Projeto Arte Pública promoveu durante o ano de 2023 diversas oficinas teatrais gratuitas na Terreira da Tribo e nos bairros Restinga, Humaitá e Bom Jesus, e recebeu doze artistas para uma residência artística remunerada com duração de um ano, que resultou no espetáculo de teatro de rua ‘Ubu Tropical’.
Dentro do Projeto ‘Teatro Como Laboratório Para a Imaginação Social’, contemplado com o Edital Olhos D’Água – Rede Nacional Escolas Livres de Formação em Arte e Cultura do Ministério da Cultura, a Escola de Teatro Popular abre neste mês de março inscrições para diversas Oficinas Teatrais, gratuitas e abertas aos interessados a partir dos 16 anos. A principal Oficina do Projeto é a Para Formação de Atores, com um ano de duração, 1.000 horas/aula, e aulas práticas e teóricas diárias, de segundas a sextas. As inscrições presenciais abrem no dia 18 de março e vão até o dia 5 de abril, das 14 às 18:30, de segunda a sexta-feira, na Terreira da Tribo (rua Santos Dumont, 1186). As aulas começam no dia 22 de abril. As disciplinas oferecidas se dividem em Interpretação, Improvisação, Expressão Corporal, Expressão Vocal, História do Teatro Brasileiro, História do Pensamento Político e Tópicos Especiais da Teoria e História do Teatro. Ao longo do processo, o oficinando/aluno estará passando por um processo programado de desenvolvimento, cuja primeira etapa encontra-se organizar em torno do autoconhecimento (conhecimento do ator), passando em seguida, para a etapa de reconhecimento (ênfase colocada no trabalho de construção de personagem), para o jogo teatral (ênfase na situação dramática) e, por fim, chegando à elaboração do produto estético: a encenação. Outra Oficina com inscrições abertas a partir de 18 de março é a de Teatro Ritual. A inscrição vai até 5 de abril através de envio de carta de intenção e currículo para o e-mail escola.terreira@gmail.com . A Oficina de duração de cinco meses, com encontros de terças a sextas-feiras, das 19 às 22 horas, investigará os recursos expressivos do ator a partir do treinamento sobre as ações físicas. E a Oficina de Teatro Livre volta a acontecer todos os sábados, a partir do dia 6 de abril, das 14 às 17 horas. Tem a proposta de iniciação teatral a partir de jogos dramáticos, expressão corporal e improvisações. Ela possui início, meio e fim em cada encontro e se desenvolve durante todo o ano. Ainda em abril a Escola de Teatro Popular da Terreira da Tribo vai abrir inscrições para as suas Oficinas Populares nos bairros Restinga, Humaitá e Tristeza. As Oficinas Teatrais em bairros populares de Porto Alegre têm como objetivo fomentar a organização de grupos culturais. Nas duas últimas semanas de julho acontece o Laboratório Aberto da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, uma imersão poética no trabalho de investigação teatral do grupo. E ainda em setembro a Escola oferecerá a Oficina de Teatro de Rua. Maiores informações pelos telefones (51) 3028 1358 e 999994570 ou no site www.oinoisaquitraveiz.com
Meierhold (Meierhold, 2019) Paulo Bio Toledo (Folha de São Paulo, 26 de novembro de 2019) À primeira vista, o espetáculo “Meierhold”, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, surpreende pela diferença com relação aos seus outros trabalhos. O grupo gaúcho, fundado em 1978 em Porto Alegre, ficou conhecido por espetáculos com elencos enormes, movimentos corais e pelos deslumbrantes espaços cênicos de vivência com o público. Bem diferente disso, o espetáculo é praticamente um grande monólogo escrito pelo dramaturgo e psicanalista argentino Eduardo Pavlovsky sobre o encenador russo Vsevolod Meierhold. Só o ator Paulo Flores e a atriz Keter Velho estão em cena, as luzes da plateia apagadas, em um palco tradicional. Mas apesar da significativa diferença estética, a montagem funciona como uma espécie de manifesto das posições que o grupo defende. A “alegria dos corpos conjuntos” de que fala Meierhold é uma constante nas décadas de trabalho coletivo da Tribo. Suas enormes montagens na rua (como a recente “Caliban”, adaptação de Augusto Boal para “A Tempestade”, de William Shakespeare) são vibrantes ocupações da cidade que reúnem dezenas de atrizes e atores, muitos deles egressos das oficinas que o grupo organiza. A biomecânica de Meierhold funciona como um dos alicerces do trabalho do Ói Nóis Aqui Traveiz. O texto precisa ganhar materialidade física, musculatura real, precisa ser traduzido em gestos e partituras corporais cheias de novos sentidos. Quando Paulo Flores diz em cena que “a imaginação é a arma mais extraordinária da revolução”, é o personagem Meierhold quem diz, mas é também o ator fundador da Tribo falando. Para ambos, a imaginação é a forma de reinventar a vida, imaginar novas sociabilidades e desenvolver maneiras cada vez mais profundas de expressividade. As posições de Meierhold expressas na peça de Pavlovsky são mais do que um assunto para o Ói Nóis Aqui Traveiz; são constitutivas do que acreditam ser o teatro. Mas há também tragédia na peça. Ela é toda organizada em torno do processo de proscrição de Meierhold, que culmina em sua execução pelo obscurantismo stalinista. Essa dialética entre supressão da vida e retórica vibrante é corporificada de forma comovente por Paulo Flores. Em cena, o corpo violentado pela tortura se reverte na gestualidade alegre de inspiração popular. A dor do mundo convive com a vontade inabalável de transformá-lo. Ainda que culmine na execução de Meierhold, a resistência dele fica de pé. E assim como foi a vida do velho diretor russo, vemos em cena a essência de um grupo que é um dos raros exemplos que faz da arte um exercício de liberdade.
Medeia Vozes: Por uma revivência do trágico [entre o não-lugar e a utopia] (Medeia Vozes, 2013) Claudio Heeman (Zero Hora, abril de 1978) E eu, para onde irei? Haverá um mundo, um tempo, com lugar para mim? Ninguém a quem possa perguntar. Essa é a resposta. A ferida sara, quando os gritos morrem. O sofrer tem limites, além dos limites fica um nada obtuso, onde se suporta o insuportável. O grito travado na garganta sobe como câncer na alma, nasce muito mais tarde e derruba os palácios. Último monólogo de Medeia, em Medeia Vozes, direcionado ao público. Comecemos pelo final. Ouçamos o eco do grito mudo. Para que escutemos em que vozes este renascerá. Embora devido à labiríntica não-linearidade do Medeia Vozes talvez pudéssemos começar por qualquer uma de suas cenas, por qualquer uma de suas vozes. Mesmo assim eu os convido a ingressar pela saída desta peça multipremiada da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz – os convido a entrar no espaço em que os atuadores dessa tribo nunca voltam para receber os aplausos, justamente porque as palavras, signos e presenças das últimas cenas desse “teatro de vivência” (cujo elemento estético e político central é exatamente o da con-vivência), nos desafiam a não ver o final da peça como um ponto final, mas sim como continuação de uma linha de reflexão profunda sobre, entre outras coisas, os significados e a potência do não-lugar. Após três horas de um teatro ritual que comporta múltiplas temporalidades e espaços, somos conduzidos à frente de uma sala feita quase impenetrável pela quantidade de árvores e galhos secos lá instalados. No fundo deste inóspito ambiente, é por entre os galhos que avistamos uma Medeia envelhecida que, sentada numa pedra, compartilha um elemento chave da sua versão da história: Mortos. Apedrejados. E eu que pensei que sua sede de vingança terminaria com a minha saída. Cega. Pensava nas crianças como se de vivos se tratassem. Não foi desta vez que os coríntios me deixaram em paz, dizem que eu matei meus filhos. Que eu, Medeia, quis me vingar da traição de Jasão. Quem vai acreditar numa história destas? A grande ironia deste questionamento que é feito diretamente a nós, é que nos coloca na posição de crédulos e ignorantes, ao mesmo tempo que nos incita a questionar o que nos levou a acreditar nisto. Foi este tipo de questionamento que levou Christa Wolf a desafiar a versão de Eurípedes na qual uma mulher traída é movida pelo desejo de vingança a cometer o mais hediondo dos crimes: matar os próprios filhos. Além disso, na versão clássica, ela trai a própria família, assassina seu irmão, mata a “Outra” e, acidentalmente, causa a morte do futuro sogro de seu marido, Rei de Corinto, adicionando, assim, o regicídio à sua lista de crimes. Ao investigar outras versões do mito de Medeia, a escritora alemã, dando continuação ao seu projeto revisionista (1) de cunho feminista, traça um retrato de uma mulher cujo único delito talvez tenha sido o de abandonar a sua própria terra, ao invés de permanecer e resistir às mudanças que cada vez mais soterravam os velhos princípios de sua sociedade de raízes matriarcais. Devido a seus poderes mágicos e por saber demais, ela foi usada pelo marido e demonizada pelo poder civilizatório de Corinto – seu novo lar que nunca a aceitou – como bárbara, assassina e bruxa. Seguindo estratégias cênicas multissensoriais, multiespaciais, de caráter itinerante, imersivo e interativo, as quais fazem parte de uma linguagem denominada “teatro de vivência” que vem sido desenvolvida ao longo das décadas, o Ói Nóis, em sua interpretação da Medeia Vozes de Wolf, também explora a riqueza do bidimensional, que serve, a meu ver, como metáfora para um dos temas centrais da peça: o reducionismo e achatamento humano que a vitória do racionalismo patriarcal “civilizado” sobre o mundo bárbaro matriarcal representam. Isso se manifesta na cena através do apedrejamento a que Medeia se refere, pois este é representado pelo ataque de “cães” (interpretados por atores cobertos em peles) que atiram sacos de tinta vermelha em um desenho retratando duas crianças. A linguagem gráfica deste desenho de giz é a infantil, na qual a figuração humana se compõe através de riscos e círculos. Neste sentido, o assassinato é ludicamente sugerido mas somente confirmado pelo monólogo que abre a última cena. Além disso, a representação dos agentes da pólis, da civilizada cidade-estado de Corinto, como cães e a dos filhos de Medeia como simples figuras rabiscadas claramente ressignifica os primeiros como bárbaros (invertendo portanto os papéis entre agentes bárbaros e civilizadores) ao passo que minimiza o papel dos filhos e da identidade de Medeia como mãe. Apesar deste monólogo final evidenciar um número de contradições, creio que o paradoxo maior surge no momento em que Medeia declara: Agora sou superior a eles. Onde quer que me toquem com as suas cruéis antenas, não encontram em mim uma réstia de esperança ou de medo. Morreu o amor, e também a dor se apaga. Sou livre. Sem desejos, escuto o vazio que me enche toda. A conquista desse “vazio cheio” alcançado através de experiências extremas, a liberta justamente porque estas a levaram a transcender toda a dor, medo, desejo e esperança, posicionando-a no que podemos chamar de não-lugar. Etimologicamente falando, o não-lugar é a tradução de “utopia”, no sentido de um lugar que só existe na imaginação, mas que impulsiona a ação humana em direção a construção de um mundo melhor. Contudo, nessa reinterpretação feminista do mito de Medeia, ela, ao invés de ser salva por Hélios (escapando de qualquer punição pelos seus ditos crimes) é condenada ao não-lugar no seu sentido mais profundo: ao espaço do exílio contínuo, apesar de ser uma inocente vítima de calúnias. O tom profetizador de sua despedida, no entanto, anuncia que todo seu sofrimento, por mais inexorável que pareça, há de eventualmente se transmutar em energia revolucionária – o que de forma paradoxal semeia a utopia em pleno território distópico. Esta leitura se confirma, de certa forma, pela
O Desvelo em Revelar (Viúvas Performance sobre Ausência, 2011) Valmir Santos (Cavalo Louco – Revista de Teatro, junho de 2011) “A forma de uma cidade muda mais depressa, Infelizmente, que o coração de um mortal”. – Baudelaire A memória de um cidadão funde-se com a do lugar onde ele vive. Forçado ao exílio nos Estados Unidos após o golpe militar de 1973, Ariel Dorfman carregou o Chile consigo através de uma obra literária de conteúdo incisivo sobre a realidade do país violentado pelo regime totalitário durante 17 anos. Quando a democracia foi restabelecida, em 1990, o escritor voltou a Santiago, mas acabou permanecendo em território americano. No final daquela década, ele cunhou a palavra “resistência” para batizar uma trilogia dramatúrgica editada em língua inglesa. A peça viúvas ( Viudas em espanhol) foi cotejada naquele livro (1) . Trata-se de uma adaptação do romance homônimo do autor, de 1981, e feita a quatro mãos com o colega americano Tony Kushner, exatamente dez anos depois. Ou seja, 1991: o mesmo ano em que Kushner viu estrear em São Francisco, nos Estados Unidos, a primeira parte do seu drama Angel in América, definida por ele como “uma ficção gays sobre temas nacionais” (Millenium approaches e Perestroika). Kushner de quem o Brasil conhece neste ano a montagem inédita da casa Cabul, de 2001, pelas mãos do diretor José Henrique de Paula, do Núcleo Experimental de Teatro, de São Paulo. O texto é vaticinador dos estigmas sobre a cultura e a religião muçulmanas com ênfase no Afeganistão. Um olhar retrospectivo nota que aproximação desses autores, Dorfman e Kushner, de formação familiar judia, tem a ver com o tônus político, que caracterizam os seus inscritos. Quanto a Viúvas, a história das mulheres que reivindicaram seus homens “desaparecidos”, cujos cadáveres são devolvidos pelas águas de um rio, é flagrante o recorte autobiográfico na figura do Narrador a entremear os diálogos sobre o desterro imposto aos direitos humanos. Ao intervir pela última vez na peça, essa voz épica reconhece nesse “conto de fadas perverso”, porque ora inventado ora embebido pelos fatos históricos, “uma forma de retornar a vida, minhas palavras viajando onde meu corpo estava proibido, meus olhos vendo que a gente lá do meu país não se atrevia a murmurar e o que a gente por aqui [nos EUA] não está interessado em ver” (2). Em Viúvas – performance sobre ausência, trabalho em andamento que veio à luz em janeiro de 2011, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz nos deu a ver os rastros das ditaduras latino-americanas por meio da história dramatizada por Dorman e Kushner. Ao ocupar a ilha das Pedras Brancas, no Rio Guaíba, o grupo particularizou que há de universal na obra. Se na peça Geografia circunscreve uma comunidade imaginária, Camacho, encravada num vale – “Não, não acho necessário contar-lhes como se chama o meu país”, diz o Narrador, alter-ego de Dorfman – ,na experiência teatral o núcleo artístico se apropria da mesma ficção para deflagrar o seu lócus banhado pelas memórias do cárcere político. Um pedaço de terra flutuante que não foi apagado pela natureza e sobre o qual a encenação em processo conseguiu atrair os olhos e a sola dos pés moradores do “continente” a bordo do Terceiro Milênio. Não dá para entrar de chofre nos princípios estéticos e de linguagem implicados. Não dá para não pensar, antes, nas escolhas. Elas ancoram a corajosa atitude dos artistas diante de sua época, do seu país, de sua cidade e, sobretudo, de seu público. A performance tornou-se um fenômeno boca-a-boca na capital gaúcha porque convidou o cidadão a correlacionar fatos históricos. A percorrer cerca de dois quilômetros num barco, em plena hora do crepúsculo. A desembarcar na Ilha do desenho disforme, com cerca de 100 metros de extensão, margeada por rochas de sugestiva alcunha, matação. A testemunhar ações corais do elenco em deslocamento a pé pelo que sobrou do presídio militar, um edifício boa parte dele em ruínas. Vêm à tona os fantasmas do totalitarismo entre aquelas paredes de tijolos e cimentos, gritos de liberdades parados no ar. “Há histórias que pedem a gritos para serem contadas e, se não há palavras ainda para elas, criam-se pele para esperar o momento”. O vento as leva, e a fumaça, o rio, as palavras de cada história encontrarão o caminho até o lugar mais solitário e afastado, sempre que haja alguém que queira escutar”, diz a neta da protagonista ao final, embalando um bebê. Uma nesga de esperança, uma possibilidade de tênue em meio à narrativa dura como tinha de ser, envolvida em organicidade poética, visual, espacial e de atuação que o coletivo de 33 anos domina tão bem em áreas ao ar livre. Foi a primeira vez que o autor conheceu de perto um experimento que desaguará meses depois na montagem propriamente dita, na perspectiva do Teatro de Vivência (3) . A linha de pesquisa da Tribo de Atuadores para as criações apresentadas em espaços fechados propõe percursos sensoriais presumidos com interlocução menos passiva do lado de cá da assistência, mão dupla entre atores e público. Aos que virão depois de nós – Kassandra in process, de 2002, e A missão (lembrança de uma revolução), de 2006, montagem anteriores sob igual paradigma, arquitetavam como que espaços cênicos tridimensionais. O espectador era surpreendido a cada atalho súbito no trânsito de uma cena à outra, especialmente nos conflitos que demandavam lutas coreografadas. A Gênese viúvas – performance sobre a ausência, por sua vez, demarca horizonte ainda não traçados pelo grupo na costumeira prospecção de Campo. Assim como a territorialidade diminuta da ilha serve de convergência a procedimentos que podem ser decorridos tanto do Teatro de Vivência como do Teatro de Rua (outra linha de pesquisa constutíva da alma desde coletivo, o DNA desbravador para o que der e vier), a referida territorialidade impeliu seus integrantes a estratégias até então desconhecidas em termos de síntese, de objetividades tangenciadas às condições-limites do local capinado, varrido e rastreado meticulosamente pelos braços sonhadores de atores, técnicos, ajudantes gerais
Cena local é destaque em Porto Alegre Grupo gaúcho Ói Nóis estréia impactante espetáculo de rua na reta final da mostra Beth Néspoli (Estado de São Paulo, 22 de Setembro de 2008) Sexta-feira ao meio-dia, Praça da Alfândega no centro da cidade, foram local e hora escolhidos pelo grupo gaúcho Oi Nóis Aqui Traveiz para estrear, no último fim de semana da 15ª edição do Porto Alegre em Cena, seu novo espetáculo O Amargo Santo da Purificação, sobre a vida do militante político baiano Carlos Marighella (1911-1969). Assim a Tribo dos Atuadores, autodenominação desse grupo que celebra 30 anos de existência, conseguiu a proeza de fechar com brilho a programação de indubitável qualidade do festival internacional de artes cênicas da capital gaúcha. Na mostra de 21 dias, que termina hoje, o espectador pôde ver boas peças nacionais, como Zona de Guerra e Amores Surdos, e estrangeiras, entre elas as argentinas Algo de Ruido Hace e Guardavidas. Dirigido por Luciano Alabarse, o festival teve ainda seus grandes destaques ao trazer montagens dirigidas por alguns dos mais talentosos diretores atuantes na cena teatral mundial, como o inglês Peter Brook (O Grande Inquisidor, de Dostoievski), o lituano Eimuntas Nekrosius (Fausto, de Goethe), o argentino Daniel Veronesi (La Noche Canta sus Canciones, de Jon Fosse) e o brasileiro José Celso Martinez Corrêa, cuja adaptação de Os Bandidos, de Schiller, fez sua pré-estréia na mostra, antes de iniciar temporada em São Paulo, na próxima sexta-feira. Pois os experientes atores do Ói Nóis – 25 nessa montagem, 13 deles jovens vindo de oficinas – conseguiram destacar-se nesse espaço privilegiado. No teatro de rua, há uma vertente estética que aposta na grandiosidade dos efeitos luminosos e sonoros em cortejos coreografados às vezes muito atraentes, de plena visibilidade na rua, mas cuja dramaturgia deixa a desejar. Na linha oposta, com uma narrativa que alcança contundência poética, porém, ou o ator está sob um palco – é teatro apenas feito na rua, mas não tem linguagem de rua – ou o espectador se vê obrigado a ficar na ponta dos pés, aos pulos, e quase pede um palco, tal a dificuldade de ver e ouvir o suficiente para fazer uma leitura com significado e/ou emoção. Em O Santo Amargo da Purificação, o Ói Nóis conseguiu unir impacto visual e sonoro, ampla visibilidade e dramaturgia elaborada. O aprimoramento do grupo nesse teatro democrático fica evidente já na primeira cena que começa em dois pontos distintos do calçadão. Por um lado chegam atores cujas máscaras, figurinos, canto e coreografia remetem com graça a ancestrais africanos. O mesmo vale para os que chegam do extremo oposto cujas máscaras, figurinos e música informam tratar-se de imigrantes italianos. Nessa encenação, a clássica coreografia abre-alas vai além da função básica que é a de atrair o espectador distraído e anestesiado em sua rotina: transmite de forma poética e sutil informações importantes. Amálgama que se repetirá a cada cena. O encontro dos dois grupos dá conta da ascendência de Marighella, filho de mãe negra e pai imigrante italiano, e estende tal origem à nação brasileira. Esse trânsito entre o privado (a trajetória de Marighella) e o público (a história do Brasil) se dará o tempo todo. E mais, as evoluções coreográficas, muito bem marcadas e atraentes, têm sempre dupla função, dramática e técnica. De forma sutil e eficiente, demarcam o espaço de representação. A roda amplia-se, ou se retrai, conforme a coreografia evolui. Enquanto isso, a trajetória de Marighella vai sendo narrada de forma atraente, com poesia e humor. Numa das cenas, informações importantes chegam em versos cantados ao som do berimbau numa roda de capoeira da qual Marighella participa, uma de suas paixões, fica-se sabendo então, assim como o carnaval. Nessa fase jovem, a interpretação de Pedro De Camillis humaniza Marighella e faz dele um personagem de forte empatia. Paulo Flores interpreta o político maduro, já engajado na luta armada. O humor popular e picaresco dá o tom no momento do encontro amoroso entre Marighella e sua mulher Clara, vivida por Tânia Farias. Numa bela cena, o grupo cita Glauber Rocha ao recriar a morte de Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol para narrar a resistência de Marighella à prisão. Um divertido boneco de Getúlio Vargas sabiamente serve para quebrar resistências à contundente crítica que se segue, ao Estado Novo. Vale ressaltar ainda o impacto visual do carro alegórico que representa o golpe militar de 1964. Grupo que faz teatro de rua, de graça e por opção ideológica, a qualidade dessa criação do Ói Nóis foi uma das provas na programação do Porto Alegre em Cena do aprimoramento alcançado pela arte teatral brasileira.
La Misión: hasta la victoria, siempre (A Missão – Lembrança de uma Revolução, 2006) Jorge Arias (Zero Hora, abril de 1978) As criações do “Ói Nóis Aqui Traveiz” são, infalivelmente, originais. Há várias interpretações possíveis e muitas encenações de “A Missão” de Müller; a dos “atuadores” difere tanto da montevideana de Alberto Rivero, como da leitura encenada de Luciano Alabarse, assim como da leitura deste crítico sobre o texto. Esta pluralidade não é contradição ou incoerência, mas riqueza; e a obra de Müller ganha em ser apreciada em suas distintas faces e diferentes ângulos. Vemos na “Terreira da Tribo” o Müller poeta, o criador imaginativo fantástico, de a “Descrição de Imagem”. Os ´atuadores´ deram relevância ao Primeiro Amor, ao anjo do desespero e à cena do Elevador, tão difícil de encaixar com o resto da peça, todas as cenas onde o autor reivindica o espaço do sonho, da fantasia livre, em suma, da liberdade humana; liberdade da imaginação que leva o autor ao nosso mundo de hoje, à Ásia, África e à América Latina, únicos lugares onde a civilização ocidental pode ser desafiada. Na cena do Elevador, como demonstração de independência e de invenção o “Ói Nóis Aqui Traveiz” colocou o homem em um vão, praticamente em um poço. Como conseqüência, a visão européia deu lugar a um outro olhar, por um lado mais particular, que nos compromete, e por outro lado mais universal, na medida que essa lâmpada acesa pelo autor ilumina nossos territórios, nosso passado montevideano em particular, desonrado pela escravatura e pela sujeição. Da mesma forma que se considerou a escravidão como inerente à humanidade, nem o primeiro cônsul, nem a monarquia, nem o capitalismo são inerentes. Tampouco é patrimônio da humanidade a transmissão patrilinear do poder; mencionada finamente na encenação, como nos assinalou Tânia Farias, quando os escravos são representados exclusivamente por mulheres, o que alude a uma segunda escravidão, ao “proletariado doméstico” de Engels, sujeição da qual ainda não nos libertamos por completo. A encenação tem uma riqueza de detalhes que à primeira vista não podemos apreciar na sua totalidade. Na primeira cena, por exemplo, na casa do Antoine, as pilhas de livros (que todos roçam e ninguém chega a derrubar) e sua fantástica aparição saindo dos armários como uma avalanche, sugerem a força física das idéias, a imposição do intelecto sobre a vida, a obra daqueles que se atreveram a enunciar idéias de liberdade que modificariam o mundo com a Revolução Francesa. Tânia também ressaltou que a música ouvida pelos espectadores, quando estes se colocam diante de uma mesa posta para um banquete, é um concerto de Paganini; porém esta escolha não foi feita ao acaso, mas porque Paganini trabalhou durante anos como músico para a princesa Ana Bonaparte; reforçando a importância de Napoleão em vários episódios da peça. Mas toda esta criação infinita de detalhes e sugestões não foi realizada em desacordo com o texto de Müller, senão sobre ele, seguindo quase linha por linha, como se os limites, os obstáculos e as dificuldades fossem a matéria do verdadeiro artista. Quando termina o espetáculo, onde assistimos dor, morte, fracasso e desolação, o estado de ânimo é de entusiasmo. A encenação torna real estas palavras de Müller a propósito do que o teatro pode oferecer: “O trágico é de fato muito vital: vejo a morte de um homem e isso me fortifica. No entanto, habitualmente, para a maior parte das pessoas, é triste que alguém morra”. Müller, sem dúvida um estóico, que não por acaso escreveu um poema ou performance sobre a morte de Sêneca, disse que temos de viver “sem expectativas nem desespero”. Como acontece com os espetáculos do “Ói Nóis…” tudo é claro e preciso, tudo funciona perfeitamente, o ritmo não se quebra nunca, apesar da pluralidade de cenários, tudo tem medida e intensidade, audácia e bom gosto, transcendência e graça; e em todos os lugares se ouve os roncos e grunhidos de Dionísio. A interpretação está totalmente amalgamada, Tânia Farias cumpre com sofisticação o difícil papel de fazer um homem negro (Sasportas) e Paulo Flores nos deleitou com uma das suas melhores interpretações.
Versão memorável da Guerra de Tróia (Aos que Virão Depois de Nós Kassandra In Process, 2002) Com Kassandra in Process, o grupo Ói Nós Aqui Traveiz mostra como estimular e distender os nervos do público Mariangela Alves de Lima (Estado de São Paulo, agosto de 2007) Quem adota por nome de batismo um verso entoado pelos Demônios da Garoa não está pensando em Londres ou Nova York. Apesar da carteira de identidade verde-amarela, os gaúchos do grupo Ói Nóis Aqui Traveiz trazem a São Paulo a sua leitura mítica da Guerra de Tróia com um título parcialmente grafado em inglês e pitadas de outras línguas no recheio. Em sintonia com as formalizações lendárias a criação coletiva Aos Que Virão depois de Nós: Kassandra in Process não tem pátria de origem nem se submete à circunscrição temporal. Pode, por essa razão, recorrer à diversidade lingüística, à superposição de estilos de diferentes épocas, ao entrelaçamento de representações culturais arcaicas e contemporâneas de todos os recantos do globo. No centro do espetáculo está o mito da princesa e profetiza troiana, cujo destino é advertir aqueles que não acreditam. Também por essa razão – os artistas-profetas de hoje são igualmente vãos -, as referências históricas contidas na encenação tornam-se em vez de advertência, lamento pungente endereçado às gerações futuras. Nesta visão apocalíptica do impulso guerreiro das civilizações, pouco sobra da esperança implícita no poema brechtiano que o grupo emprestou para dar o subtítulo do espetáculo. A julgar por essa criação, o grupo sulista confia pouco ou nada no advento da época em que o homem será amigo do homem. De qualquer modo, a ordem mundial do tempo presente empresta substância às profecias beligerantes de todas as épocas anteriores. Estruturada como uma antologia de escritos poéticos e filosóficos sobre a catástrofe da violência intencional, a encenação refere-se mais ao sentido filosófico e ao impacto psíquico do que aos fatos. Cidades destruídas e populações exterminadas são documentadas de modo verista pelos meios de comunicação e pelo cinema. No teatro feito pelo grupo gaúcho, a memória da protagonista é o espaço onde se desenvolvem em desordem cronológica as evocações dos episódios da Guerra de Tróia, a reflexão sobre a futilidade do conflito e a evocação breve da existência pacífica anterior. Emprestados de autores clássicos e contemporâneos, recortados com precisão e muito bem alinhavados, os textos utilizados no espetáculo são genéricos quando tratam da pulsão de morte e lírico quando se referem ao sofrimento individual dos guerreiros e dos habitantes da cidade sitiada. A alternância entre a reflexão e o plano íntimo da afetividade tem grande importância na formalização do espetáculo porque atribui significados complementares aos ambientes reclusos ou amplos que os espectadores percorrem no decorrer do espetáculo. Enquanto rememora combates, saques, cortejos bélicos e atos violentos, de um modo geral, a sacerdotisa Cassandra projeta voz para ocupar espaços amplos, figuração da planície arenosa no entorno da cidade sitiada ou da vastidão do palácio onde os priamidas confabulam para sustentar uma guerra com motivos falsificados. Ao reviver as alegrias do noviciado no templo de Apolo, as lembranças da família, amigos e amores, a protagonista tem uma projeção de voz mais contida e movimentos proporcionais ao espaço tratado com revestimentos aconchegantes para que se mesclem sentimento e sensação. Professando o credo do teatro ambiental, em que o intérprete partilha com o público os estímulos físicos do espaço e a área de atuação e recepção se alternam ou coincidem ao longo do espetáculo, o elenco do Ói Nóis Aqui Traveiz assume os riscos da opção pela mobilidade e pelo convite à participação. Nem todos os espectadores reagem com a mesma rapidez a um convite para mudar de lugar e a hesitação imprime ao espetáculo um ritmo mais lento, por vezes em desacordo com o vigor das cenas de debate ou confronto corporal. Em outros momentos, os intérpretes se demoram em um achado a que, de modo evidente, atribuem valor estético e a imagem perdura depois que o impacto se esgotou. Quase todas as evocações de um passado tribal, idílico, em que se fundem os mitos de agrários do Oriente e do Ocidente são formalizados de um modo ingênuo, que nos parece debilitado pelo uso freqüente das mesmas composições e materiais repetindo-se no teatro desde os anos 60 do século 20. Em compensação, há nesta visão nada idílica dos homens cenas de extraordinário poder de síntese que só poderiam ocorrer no teatro, porque dependem do engajamento físico do público. É necessário peregrinar, pisar em superfícies insólitas, galgar, descer e adaptar-se a graus diferentes de luminosidade para se tornar sensível ao conforto do repouso e atento aos elementos próximos e, por vezes, diminutos que o espetáculo mobiliza. Não há dúvida de que o grupo conhece a técnica de estimular e distender os nervos do público. No entanto, mais do que isso, tem a experiência da relação dialógica que depende, em igual medida, das palavras, dos estímulos visuais e sonoros e do ambiente compartilhado. Há muitas coisas memoráveis na encenação, mas a recriação da atmosfera do regime nazista é um dos ápices. Nessa cena, o macrocosmo é simbolizado por coisas de aparência delicada e pungente. De uma pequena caixa, com um fio de linha manipulado por um coro juvenil, vai-se desenhando um signo infame. Todas as cenas subseqüentes, depois que a memória se resigna a enfrentar a queda da cidade, a tortura dos combatentes capturados e o estupro e seqüestro das mulheres, infâmia recorrente nos relatos de todas as guerras em todas as épocas, formam um espécie de composição mural gravada em alta definição com aquele selo do belo horrível que não nos permite esquecer o que perturba. As criações coletivas são fruto de uma postura ética que divide os créditos com toda justiça, porque teatro é sempre produção coletiva. Nesse grupo, contudo, seria uma falsificação galante ignorar o imenso talento, a maestria técnica, a doação absoluta de Tânia Farias ao espetáculo. Quanto ao talento, não há o que dizer, porque há pessoas assinaladas para o palco que, para nossa sorte, não fogem ao