Aos que Virão Depois de Nós KASSANDRA IN PROCESS (2002)
Sinopse
“Aos Que Virão depois de Nós – Kassandra in Process” é um espetáculo de criação coletiva da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, inspirado livremente na novela homônima de Christa Wolf. Dando continuidade ao caminho trilhado pelo grupo em trabalhar com mitos que resultaram nos espetáculos ‘Antígona Ritos de Paixão e Morte’ e ‘Missa para Atores e Público sobre a Paixão e Nascimento do Doutor Fausto de Acordo com o Espírito de Nosso Tempo’. KASSANDRA possibilita ao Ói Nóis Aqui Traveiz colocar em cena a sua proposta de Teatro de Vivência, onde o espectador está integrado ao espaço vivenciando as ações cênicas em diferentes ambientes. Realizando um teatro voltado para o sensível atingindo o espectador-participante não somente em sua esfera racional, mas em sua afetividade. Para fazer explodir diante de nós próprios os reflexos daquilo que vislumbrava Artaud, um teatro onde a vida se tornasse autêntica, onde fosse possível se chegar a algo corporalmente. Esta proposta dionisíaca, de participação física, pode levar o espectador, na busca da compreensão dos mistérios da existência humana. Através da imagem arquetípica dos mitos, o teatro é um meio de explorar as zonas desconhecidas do espírito, uma procura poética da verdadeira vida com a liberação de todos os entraves que ela implica. Beleza e convulsão, antigo e moderno, gótico e pós-modernismo deve permear a cena num espetáculo de fôlego e maturidade. Na adaptação são utilizados fragmentos de tragédias gregas.. As questões colocadas no texto são ratificadas por uma colagem de imagens que pretende mais do que tudo dialogar com o presente. A base da linguagem ritualística está na aproximação entre atores e espectadores, que nos remete às raízes da cena onde todos estão integrados e o teatro não é um espetáculo visual passivo. Uma cena restrita, com poucas pessoas experimentando uma vivência junto com os atores, para que realmente exista o contato e se estabeleça uma relação viva, um encontro sincero, que tenha o efeito de abalo, que perturbe, que tenha a força de um acontecimento do qual atores e espectadores sairão transformados. O ambiente cênico remete o espectador às ruínas de Tróia, ao portal dos leões na cidadela de Micenas e a cenários de guerras e desastres ecológicos dos século XX. Como diz a própria Christa Wolf “séria é a vida, leve a arte é uma sentença que nos escapou, suas significações parecem ter degenerado em seus contrários, a arte < toda uma história >, e em particular o texto, a imaginação criativa, tornaram-se um campo de batalha.” Aproveitamos esta citaçào para referir-nos ao clima desta encenação que pretende olhar com uma perspectiva atual esta antiga história, material transcrito desde Homero e dos trágicos atenienses, mormentes Eurípedes, passando por toda tradição de mitógrafos tardios como Apolodoro, Pausânias, Quintos de Smirna, para chegar até nós, através da lente anarquista e marginal do teatro de vanguarda.
A encenação discuti a guerra, mas também as liberdades civis, os efeitos de verdade e de realidade, as falsas convenções, o direito à lucidez contra o canibalismo declarado dos sistemas de poder organizados em estruturas hierárquicas, a crueldade contra os excluídos e o próprio processo de exclusão e suas leis invisíveis. Tróia num estado de ruína, confrontada com uma Tróia auto-sustentável e repleta de riquezas, fará deste exemplo um modelo para uma abstração generalizante. Porquê se começa uma guerra? Novamente citando as reflexões da autora sobre seu trabalho: ‘a questão que se colocou foi – quando e como esta tendência à auto-destruição apareceu no pensamento e na ação ocidental? E a chave desta questão me fez remontar mais e mais longe no tempo, até a Antiguidade clássica”. Para William Blake, os responsáveis pela cultura ocidental guerreira não foram de nenhuma maneira os bárbaros ou os religiosos, mas os clássicos. Estudando a guerra e introduzindo engenhos de morte no cenário, queremos incitar a que nos perguntemos sobre os valores guerreiros e heróicos que arrasta sempre nossa cultura. Que se tornou destes valores no final do século XX, que conheceu os horrores que todos sabemos? Que aconteceu com nossas tradições artísticas e com sua capacidade de examinar nossa civilização? No contexto atual, constitui a vanguarda – conceito artístico que faz um uso irrefletido de uma metáfora militar – algo mais do que uma irresponsável fuga adiante?
Fazendo uso de elementos e materiais iconográficos tomados da Segunda Guerra Mundial, da Alemanha Nazista, do bombardeio atômico de 45, das catástrofes ecológicas e utilizando de novo este material, o artista-encenador combate questões cruciais para uma boa compreensão da nossa cultura e revigora o sentido de uma arte que não se afasta dos pontos cruciais e dolorosos de seu tempo, mas antes os enfrenta e confronta, esperando construir entendimento e compreensão. Concebida como um sincretismo hetereogêneo de temporalidades, a montagem ao mesmo tempo firma-se no registro trágico antigo das vítimas mulheres troianas, conforme ‘As Troianas’ de Eurípedes, como também comprime quase três mil anos de cultura em alguns gestos simultâneos e similares: a violação, a rapinagem, o imperialismo belicista masculino, representados por uma falocracia que perpassa o comportamento e o discurso ocidental masculino. Basicamente trabalhando com os conceitos de metáfora e de paródia, pretendemos atingir um público não erudito, mas que saberá reconhecer através de Príamo ou Aquiles seus governantes, professores, maridos, pais…, numa expressão mais abrangente da questão de gênero na formação do Ocidente.
Ficha Técnica
Autora: Christa Wolf
Fragmentos: Albert Camus, Allen Ginsberg, Arthur Rimbaud, Eurípides, Heiner Müller, George Orwell, índios norte-americanos, Jorge Rein, Mahabharatha, Pablo Neruda, Peter Hadke, Samuel Beckett
Roteiro, direção, cenografia, figurino e adereços: criação coletiva
Criação e execução do Cavalo de Tróia: Gustavo Nakle
Música: Alex de Souza
Iluminação: Denise Souza, Edgar Alves, Jeferson Vargas e Sandra Steil
Assessoria Teórica: Paulina Nólibos
Sonoplastia: Edgar Alves e Sandra Steil
Contra-regras: André Luís, Edgar Alves e Marcos Caldeira
Contra-regra em substituição: Pedro Kinast de Camillis
Costureira: Heloísa Pacheco
Crochê em sisal: Maria das Dores Pedroso
Elenco: André Luís, Carla Moura, Clélio Cardoso, Diego Comerlato, Luana Fernandes, Marta Haas, Nara Brum, Paulo Flores, Renan Leandro, Roberta Darkiewicz, Sandro Marques e Tânia Farias
Intérpretes em substituição: Daniel Gustavo, Denise Souza, Edgar Alves e Pedro Kinast De Camillis
Estréia de Kassandra in Process, Gênese: 30 de novembro de 2001
Estréia de Aos Que Virão Depois de Nós, Kassandra in Process: 10 de setembro de 2002
Local: Terreira da Tribo