Meierhold
Paulo Bio Toledo (Folha de São Paulo, 26 de novembro de 2019)
À primeira vista, o espetáculo “Meierhold”, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, surpreende pela diferença com relação aos seus outros trabalhos. O grupo gaúcho, fundado em 1978 em Porto Alegre, ficou conhecido por espetáculos com elencos enormes, movimentos corais e pelos deslumbrantes espaços cênicos de vivência com o público.
Bem diferente disso, o espetáculo é praticamente um grande monólogo escrito pelo dramaturgo e psicanalista argentino Eduardo Pavlovsky sobre o encenador russo Vsevolod Meierhold. Só o ator Paulo Flores e a atriz Keter Velho estão em cena, as luzes da plateia apagadas, em um palco tradicional. Mas apesar da significativa diferença estética, a montagem funciona como uma espécie de manifesto das posições que o grupo defende. A “alegria dos corpos conjuntos” de que fala Meierhold é uma constante nas décadas de trabalho coletivo da Tribo. Suas enormes montagens na rua (como a recente “Caliban”, adaptação de Augusto Boal para “A Tempestade”, de William Shakespeare) são vibrantes ocupações da cidade que reúnem dezenas de atrizes e atores, muitos deles egressos das oficinas que o grupo organiza.
A biomecânica de Meierhold funciona como um dos alicerces do trabalho do Ói Nóis Aqui Traveiz. O texto precisa ganhar materialidade física, musculatura real, precisa ser traduzido em gestos e partituras corporais cheias de novos sentidos. Quando Paulo Flores diz em cena que “a imaginação é a arma mais extraordinária da revolução”, é o personagem Meierhold quem diz, mas é também o ator fundador da Tribo falando. Para ambos, a imaginação é a forma de reinventar a vida, imaginar novas sociabilidades e desenvolver maneiras cada vez mais profundas de expressividade. As posições de Meierhold expressas na peça de Pavlovsky são mais do que um assunto para o Ói Nóis Aqui Traveiz; são constitutivas do que acreditam ser o teatro.
Mas há também tragédia na peça. Ela é toda organizada em torno do processo de proscrição de Meierhold, que culmina em sua execução pelo obscurantismo stalinista. Essa dialética entre supressão da vida e retórica vibrante é corporificada de forma comovente por Paulo Flores. Em cena, o corpo violentado pela tortura se reverte na gestualidade alegre de inspiração popular. A dor do mundo convive com a vontade inabalável de transformá-lo. Ainda que culmine na execução de Meierhold, a resistência dele fica de pé. E assim como foi a vida do velho diretor russo, vemos em cena a essência de um grupo que é um dos raros exemplos que faz da arte um exercício de liberdade.